1 0 0 H 0 0 + 2 H 0 0 [ G M T + 1 ]
NÚMERO 89
Eu não teria perdido um Seminário por nada do mundo — PHILIPPE SOLLERS
Vamos ganhar porque não temos outra escolha — AGNÈS AFLALO
LACAN COTIDIANO
▪ RAFAH ▪
▪ LACANQUOTIDIEN.FR ▪
▪ CRÔNICA ▪
ATUALIDADE SAÚDE MENTAL
por Carole Dewambrechies-La Sagna
Podemos evitar as rupturas e os conflitos?
▪ CRÔNICA ▪
L’AIR DU TEMPS
por Jean-Pierre Deffieux
CHLOÉ ET MARIE
▪ JANELA ▪ JJSS e o corpode DSS por Jacques Ruff
Bach - Harpsichord Concerto
No.1 in D Minor BWV 1052 - 1/3
Sur un galop de notes endiablées…
▪CRÔNICA ▪
ATUALIDADE SAÚDE MENTAL
por CaroleDewambrechies-La Sagna
Podemos evitar as rupturas e os conflitos?
Apresentei recentemente aos leitores de LQ (1), a proposta de evitar rupturas, como recomendação do Ministério da Saúde. Relembro o contexto: foi criado um comitê de orientação do planejamento da saúde mental no período 2011-2015, o Ministério apresentou os eixos estratégicos que se baseiam na recomendação principal de “reduzir e prevenir as rupturas “.
A idéia subjacente a estas recomendações pouco claras poderia ser a de que se devem evitar ao máximo as rupturas relativas aos pagamentos dos pacientes. Isto não é suficiente, pois como podemos cobrar alguém que não está presente? Evitando a ruptura geográfica. Como cobrar continuamente aqueles que estão? Evitando a ruptura temporal. Como cobrar aqueles que não se sentem doentes? Explicando à sociedade que as doenças psiquiátricas não são graves e não devem preocupar ninguém: podemos então solicitar um tratamento psi, da mesma maneira que pedimos um antálgico para tratar uma dor nas costas. É bom para todos. Para convencer os pacientes disto, os teóricos devem se apresentar com uma imagem pacificada e não apaixonada por eles mesmos: evitando as querelas teóricas dos pesquisadores ou dos clínicos. Ao se colocar em acordo a respeito das praticas consensuais e com as teorias aceitáveis ou já aceitas, seremos mais bem vistos e melhor compreendidos pelo público, e consequentemente pelos pacientes e futuros pacientes. E, Freud se este principio tivesse sido proposto antes, ele provavelmente não teria inventado a psicanálise ou não poderia valorizá-la por aqueles capazes de evitar conflitos. Já que atrás do termo ruptura como sendo o nome daquilo que deve ser evitado inclui o termo conflito que dá outra tonalidade à recomendação do Ministério.
A doença mental nasce de um conflito? Se assim for, como ele poderia ser evitado?
Freud se dedicou muito a responder esta questão atribuindo ao conflito o nascimento da neurose: conflito de desejos, conflito entre uma pulsão que exige sua satisfação e um ideal que recusa, conflito entre um sujeito e sua família, entre um ser humano e a sociedade que pede cada vez mais renuncias da parte dele. É desta maneira que o sintoma psicanalítico traz desde sua origem a marca do conflito. É desta forma que Freud pode dizer que o sintoma analítico é ora sinal, ora satisfação substituta de uma pulsão que não se realizou. (2)
Freud estende esta consideração ao campo das psicoses: há três grandes tipos de doenças segundo as instâncias conflitivas: “a neurose de transferência que corresponde ao conflito entre o eu e o isso, a neurose narcísica cujo conflito se dá entre o eu e o super eu, na psicose conflito entre o eu e o mundo exterior” (3)
A origem do conflito poderia ser evitada? As instâncias, eu, isso e supereu, podem ficar em paz? Por existir a linguagem esta ilusão não pode ser vislumbrada. O conflito entre as instâncias é também o que faz com que o sujeito apareça, é também aquilo que faz com que ele possa se utilizar de seu inconsciente para se orientar em sua existência. Poderia a sociedade ser mais permissiva? Alguns teóricos se apóiam nesta via, sem sucesso uma vez que a falha de que se trata é aquela que separa um corpo de seu gozo, que separa um ser falante daquela que seria sua satisfação.
O conflito ao contrário é operatório, produtivo constituinte de uma subjetividade. O conflito é o pai de todas as coisas dizia um filosofo grego antigo. Nada acontece sem oposição, se colocar é o mesmo que se opor e isto vale para todos os sujeitos, doente mental ou não, se nós queremos deixar de ter o déficit como referência para a psicose e para a mentalidade. O conflito está sempre presente, a questão é saber nos termos de Freud “em quais circunstâncias e através de quais meios o eu consegue escapar destes conflitos, sempre presentes, sem cair doente.
O novo plano de Saúde Mental previsto para dezembro 2011: vamos nos preparar então para responder a ele defendendo as rupturas frutíferas e fecundas, o conflito dialético e dinâmico contra a obediência, o assujeitamento e o pseudo consenso teórico. A psicanálise reconhece o conflito como força da doença: cabe a nós explicarmos que o conflito não deve ser erradicado: isto seria o reinado da pulsão de morte que se infiltra no silêncio.
______________________________
(1) « Pas de rupture pour une bonne santé mentale », in Lacan Quotidien n°80, publié le 6.11.11, lire l’ ar tic le . (2) Freud, S. “Inibições, Sintomas e Ansiedade” (1926). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XX. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
(3 ) Freud S., Névrose, psychose et perversion, PUF, Paris, 1974.
▪ CRÔNICA ▪
L’AIR DU TEMPS
por Jean-Pierre Deffieux
CHLOÉ ET MARIE
Minha contribuição hoje combina bem com minha crônica intitulada L’air du temps. Não é tão fácil estar em nosso tempo. Isto pede esforço, recuos, vigilância, e, também, curiosidade, e mais além, um interesse direto em seu inconsciente e um trabalho assíduo sobre o si mesmo para tolerar a diferença.
Um exemplo:
L’ air du temps, aquele da ciência que não dá a mínima à lei, que o embaraça, que desarranja as tradições, nossas estruturas mais estabelecidas e que visa ao novo, à invenção, nem sempre sem riscos.
Chloé e Marie estão juntas há 14 anos. São casadas e tem 3 filhos.
- Mas como isto é possível? Já que o casamento homossexual e a homoparentalidade são proibidos na França.
-Na verdade Chloé nem sempre se chamou Chloé mas Wilfried, eles constituíam então uma família dentro dos moldes mais tradicionais.
- Então se trata de um transexual?
-Sim, Wilfried à beira de uma tentativa de suicídio “saiu do armário” e desta maneira balançou Marie dizendo: que ele se sente mulher desde sempre, desde a infância que ele deseja se transformar em mulher.
- E como ele conseguiu prender esta Marie que vive com este homem durante 14 anos?
-Ela ficou aliviada, pois há muito tempo seu desejo já se orientava em direção às mulheres, ela só havia se relacionado com mulheres até se apaixonar por este homem bastante feminino.
- Mas, que história mais insensata?
- Nem tanto assim, podemos dizer que eles encontraram uma boa saída, e estão bem mesmo.
- E, os filhos, não estão completamente traumatizados?
- Parece que não . O que eles temem é que o núcleo familiar seja afetado. É uma família bem afetuosa e unida.
- Não compreendo: como a família pode ser atingida?
- Bom, a ciência médica vai responder à vontade de Chloé, na verdade já começou, vai realizar seu voto mais secreto, o de se transformar em mulher. Mas ao mesmo tempo ela vai contra a lei: uma família tradicional vai se transformar numa família homo parental: duas mulheres casadas com três filhos.
- E o que vai acontecer agora?
- Estamos aguardando a resposta do tribunal de Brest em 15 de dezembro, e os advogados estão bem otimistas. O promotor não pediu o divórcio, contrariamente às solicitações anteriores, antes da mudança de sexo. O advogado pensa que a promotoria vai modificar o registro de nascimento de Wilfried e a certidão de casamento deles.
- Será a primeira vez!
- Sim, e dará inicio a uma série que acabará provocando uma mudança na lei.
- E tudo isto por haver choques entre os avanços da ciência e uma lei estabelecida há muito tempo!
- Certamente!
▪ JANELA ▪
JJSS* e o corpo de DSS
por Jacques Ruff
Houve uma recidiva de seu câncer. Restam somente alguns meses de vida. David Servant Schreiber escreve seu último livro que foi lançado um mês antes de seu desaparecimento em julho de 2011. O título: “Podemos dizer adeus muitas vezes”. Será um grande sucesso como “Curar” e “Anticâncer”? Eu assim desejo, pois justamente neste último livro, ele nos diz em que ele não soube se manter naquilo que foi prescrito. Essencialmente ele não recusa nada que foi proposto. Trata-se de recorrer a produtos naturais, sem medicamentos nem psicanálise. Algo que se pratica através de exercícios físicos, meditação e nutrição controlada, todo processo comporta as quantificações precisas e medidas por estatísticas. Desta maneira ele nos lembra que encontramos dentro de nós mesmos os meios para a cura. Precisamos utilizar o corpo e não a linguagem; disto resulta o banimento da psicanálise.
Resumindo, se seguirmos seus livros com sucesso de vendas, é necessário manter o corpo dentro de certa homeostase, orientados por uma disciplina de vida de tal forma que o excesso não venha produzir uma perturbação no corpo que possa se expressar através do câncer. Minha proposta não visa criar contradições sobre esta maneira higienista de viver. Pois com efeito não é necessário nenhuma regra de vida para que haja um bom funcionamento do corpo. Somente, para lembrar que estes princípios não se sustentam. E, não são novos. A filosofia grega já tomava como referência na hubris, no excesso e no transbordamento os inimigos ao ideal de vida equilibrada.
Então, porque ele teve uma recidiva do câncer? Ele não foi capaz, segundo ele próprio, de se manter dentro de suas prescrições. É o que torna seu livro interessante por um lado e irritante e desconcertante por outro.
De fato, de um lado ele nos dá a chave de seu impasse, mas de outro ele não tira as conseqüências necessárias. Esta conclusão é no entanto, evidente: ele não se deu conta da incidência da linguagem em seu corpo. Isto é o que poderia ter sido sua relação com apsicanálise, que ele rejeitou, aparece em seu último testemunho. Mas o que irrita é ele querer convencer que o fato dele ter fracassado em seu plano anticâncer deve-se a aspectos da vida pessoal e aqueles que não compartilham dos mesmos problemas podem se beneficiar de suas prescrições.
Qual é então este ponto que torna sua vida uma exceção? Ter tido um pai como JJSS.
Ele conta suas conversas com seus irmãos que o reprovam por uma vida muito extenuante. Ele fez muitíssimas viagens entre a Europa e os Estados Unidos: como se ele estava ligado permanentemente numa corrente elétrica. E é exatamente da origem deste ritmo de vida que ele vai falar. Ele se preocupa em dizer que ama as atividades físicas levadas ao limite. Ele tem um gosto excessivo pelas experiências difíceis de serem vividas. Ele relata os diferentes acidentes graves que sofreu, dentro do capítulo de seu livro intitulado “Aprendizagem da coragem”.
A primeira frase, meu pai Jean-Jacques tinha métodos próprios para “aprender a ter coragem”. Coloca esta frase entre aspas e não explica este detalhe de escrita. Isto é que vai falar da marca do pai ele carrega em seu corpo.
Seu pai lhe conduziu a praticar esqui aquático à noite, uma vez na Flórida. Tinha que ser à noite para tornar a experiência mais inquietante. Este ponto seria suficiente para expressar o que é marcante. Há outros, como os tubarões. Com ou sem tubarões ele teria que pular na água caso contrário seu pai o jogaria.
Concluindo que nada poderia ser mais apavorante do que esquiar entre cachorros e lobos em águas escuras cujas sombras se confundem com as de tubarão. Nada. Nem mesmo uma gravíssima recaída de câncer. Ou seja sua recordação, este gozo que seu pai lhe impôs é mais angustiante que a recaída de seu câncer ou que os riscos aos quais se expunha na prática de esportes radicais.
Como poderia ele encontrar esta tranquilidade tão aspirada carregando uma marca tão indelével? Esta marca não se refere à maneira que seu pai lhe falava, mas seu corpo que não conseguiu se livrar das exigências do pai. Ele sugere que se pratique a atenção clássica à respiração e encontre aí um tempo para a pausa, da parada ao frenesi. Mas seu pai a quem ele se mantém um filho fiel, permanece intocado. Ele espera ter transmitido aos filhos a marca JJSS! Ele permanece submetido a um pai que engana a morte, um pai Express.
Aquilo que pode nos manter é que o corpo é um composto ternário como diz Lacan, que inclui uma dimensão real e imaginária, mas também uma dimensão simbólica que DSS não inclui em sua composição. Ele nos diz que podemos dizer adeus muitas vezes. Ele nos deixa justamente este detalhe antes de partir, que no entanto ele fracassou em falar novamente. Ele poderia então nos ter dito adeus, mas desta vez imediatamente após haver discutido tudo isto. Faltará sempre este tempo lógico que viria após o tempo para compreender e imediatamente antes a precipitação do momento de concluir.
* Jean-Jacques Servant-Schreiber – Jornalista e político francês – conhecido pelas iniciais JJSS, pai de David Servant-Schreiber. (nota da tradutora)
Nenhum comentário:
Postar um comentário