16 de janeiro de 2012

LACAN COTIDIANO Nº 115 - PORTUGUÊS


Quarta-feira, 14 de dezembro de 2011, 00h00 [GMT +1]

Número 115

Eu não teria perdido um Seminário por nada do mundo – PHILIPPE SOLLERS

Nós ganharemos porque nós não temos outra escolha – AGNES AFLALO

www.lacanquotidien.fr


*PETITE GIRAFE*




A criança que vem, Eric Zuliani

Restabelecer um horizonte

*ENCONTRO COM BENOÎT JACQUOT*

O feminino lacaniano é um desejo fora da norma que se abre sobre o mundo ?

Marie-Claude Chaviré-Brousseau

OS MUNDOS POSSÍVEIS

VISTO NA TELEVISÃO!

Jean-François Leimann

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*PETITE GIRAFE*

A criança que vem por Eric Zuliani

Restabelecer um horizonte

Depois ter feito de nós uns “bretonnisants” no final dos anos 70, de nos ter revelado que éramos decididamente uma «massa sentimental», eis que Souchon nos fala, em sua última música, de crianças. Souchon, evidentemente, é uma cantiga; nós podemos acusá-lo de estar demais no “air du temps” [na moda]. Eu não penso assim, ele encontra nomes a este “air du temps”: irrespirável este tempo de hoje para as crianças. J.-A.Miller, em sua intervenção de 19 de março, o indicou assim, quando ressaltava: “quando o Outro asfixia o sujeito, com a criança trata-se de fazê-la recuar, afim de devolver a esta criança uma respiração”.

A canção de Souchon coloca um forte binário que permite a dita respiração: Existe o dia, existe a noite. O título em si mesmo é lacaniano. Com efeito, o dia e a noite, Lacan fala disso em fevereiro de 1956 no seu Seminário sobre as psicoses. Tendo visivelmente pouco convencido seu auditório na lição precedente ao falar da «paz da noite», ele retoma sobre o que são o dia e a noite, para demonstrar que «a realidade é de início marcada pelo aniquilamento simbólico». De fato, acrescenta, «o dia e a noite são muito cedo códigos significantes e não experiências». Existe o dia e a noite é a articulação que conota a presença e a ausência. O que diz a canção? O dia, é a escola: “Tudo o que o mestre tem em mente, colocará na minha (…) em algum momento nos entediamos (…). Calar-se, organizar, fazer os deveres”; a noite são os sonhos onde “nos lançamos no vazio e onde sou eu quem decide”. É

interessante notar que o que é da ordem da decisão é colocado do lado do sonho. Freud havia notado, ele também, ao longo da análise de Dora, que um sonho é equivalente a uma decisão, e, a propósito dos sonhos repetitivos, que uma decisão se mantém até que ela seja efetuada. De passagem, vê-se que Freud distinguia o plano da realização do desejo daquele das consequências concretas que um sujeito dele pode tirar. Mas, um sonho pode ajudar um sujeito a reencontrar um horizonte, justamente o do desejo. É desta maneira que se pode compreender uma respiração permitida a uma criança.

Sacha repetiu de ano. Mas também foi obrigado a redobrar a atenção na vida, na qual ele tenta encontrar um pouco de tranquilidade.

Seus pais se divorciaram e os pais, as verdadeiras crianças, se destroem um pouco, muito, passionalmente: o não todo virá, mas tarda. Ele está sombrio, fechado e triste, não conseguindo falar.

Ele sussurra: «Eu não estou tranquilo. Um pouco tudo do mesmo, durante o recreio. Mesmo à noite eu não estou tranquilo. Mesmo durante as férias: é preciso sempre fazer alguma coisa»

-Quem é tranquilo então ?

-JP (o novo companheiro da mãe), mas eu não gosto dele. As meninas também são tranquilas, mesmo que elas disfarcem um pouco. É melhor se não as vemos fazer. Eu sou apaixonado por Marie, mas ela? Quando brincamos, eu a toco, ela me quer.

- Como se chama este jogo ?

- Família lobo… ». Sacha desaba em lágrimas. A sessão não poderá ser retomada.

Ele retorna à sessão seguinte muito angustiado. Teve um pesadelo: “uns tipos de pessoas sangravam. As feridas. O sangue derrama e isto me acorda”. Um longo silêncio se instala. Como interpretá-lo? [Comment prendre la chose?].

- “Alguém foi machucado…

- Sim, porque as pessoas não gostam dele, ou porque ele fez alguma coisa de mal ou porque é uma missão. É como o 11 de setembro: as pessoas se mataram a elas próprias. O personagem do pesadelo é luminoso e está escuro ao redor. São bosques. (sua voz retoma vida)

- Que idade ele tem?

- Mais ou menos como meu pai… Eu me lembro que quando eu tinha 4 ou 5 anos eu cai no meio dos cascalhos, espinhos e urtigas. Eu sangrei muito. Papai já tinha saído pelo bosque. Eu tentei encontrá-lo».

Ele faz então, uma lista com inúmeras citações de façanhas ou para comparecer, incríveis acidentes que deixaram marcas em seu corpo. Depois ele acrescenta: «Mas eu quase morri uma única vez, me afogando; e aí eu tive medo».

No encontro seguinte, ele reencontrou o sorriso porque teve um sonho que tinha pressa em me contar: “Eu podia ter todos os brinquedos. Se eu os quisesse, vários de uma só vez, eu podia fazer tudo o que eu quisesse. E eu não os pagava, então eu poderia dar a alguém».

Livre da realidade triste – a fala tornou-se livre -, as lembranças, as formações do inconsciente, puderam então surgir. O estilo do sonho é notável: tudo está em potencial de realização de decisão – os objetos se põem a circular -, mesmo que nada seja executado. Entretanto, tudo se torna possível novamente. O sonho equivale à realização de um desejo significa, a meu ver, que ele permite a Sacha a realização de uma posição desejante renovada.

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*ENCONTRO COM BENOÎT JACQUOT*

O feminino lacaniano é um desejo fora da norma que se abre sobre o mundo? por Marie-Claude Chauviré-Brosseau

Neste início de dezembro de 2011, na primeira noite do ano de «Cinema e Psicanálise» em Angers, a ACF escolheu o filme «Villa Amalia» e convidou Benoît Jacquot para discutí-lo. A grande sala de 220 lugares do cinema Les 400 Coups estava completa.

Com um estilo muito direto e sem cerimônia no diálogo com o público, Benoît Jacquot se questionava: Por que sou o único cineasta a fazer filmes sobre esta questão do feminino (no sentido lacaniano)?”. Como relembrava Guilaine Guilaumé, ele tinha dado uma pista da resposta numa recente entrevista onde contou que, quando era criança, seus pais iam frequentemente ao cinema e ele esperava para dormir que sua mãe viesse lhe contar o filme. «É fato que para mim existe como uma equivalência particular das palavras e das imagens». Não é esta a situação sonhada para ligar fortemente ao cinema, a questão freudiana: «O que quer uma mulher?». A continuação é conhecida: Benoît Jacquot soube realizar uma obra cinematográfica aberta ao mundo dando atenção aos desejos mais singulares, aqueles que se situam além das convenções comuns. O encontro com Lacan e a realização do filme Televisão fazem parte disso.

Villa Amalia também se inscreve nessa perspectiva. Ann, a heroína, interpretada de maneira espetacular por Isabelle Huppert, rompe com uma vida conjugal que, de repente, se desfaz. B. Jacquot evocou a frase de Lacan a propósito de Lol V. Stein, de M. Duras: «as núpcias taciturnas da vida vazia com o objeto indescritível». Ele situou Ann próxima de Lol considerando que o amigo Georges pudesse ser um amigo imaginário assim como acontece com as crianças de inventar um. Nós não estamos de acordo: à diferença de Lol, Ann não parte sem querer «apagar sua vida anterior». Ela não segue brutalmente outra mulher. Ela não está em errância. Ela organiza metodicamente sua ruptura e sua partida em direção de uma outra vida ainda desconhecida. Ela diz «não» à sua vida conjugal e também à sua vida de pianista reconhecida. Em seu desejo, ela está determinada sem saber onde isto vai conduzi-la. Ela nos parece mais «pas-folle-du-tout» [“nada ter de louca”], como diz Lacan em Televisão [Outros Escritos, p. 538, nota de rodapé]. Ela anda e nada com raiva. Ela muda de direção, de roupas, sem perder «o fio» de seu desejo. Diante da imensidão do mar e do infinito do céu, ela encontra a Villa Amalia e nós sentimos a força desse lugar para ela. Ela se instala rapidamente e recomeça a compor.

B. Jacquot não queria colocar muito sentido no que ele chama «uma transposição cinematográfica» do romance de Pascal Quignard. «Isto foi feito com um machado». Imediatamente ele colocou de lado algumas partes e destacou outras como o encontro amoroso e sensual de duas mulheres muito diferentes fisicamente: «também são minhas fantasias de homem de colocar uma outra mulher na cama com Isabelle».

Referente à questão do pai para Ann, B. Jacquot reservou os momentos-chave do romance. Assim, quando a filha do proprietário da vila, Amalia, lhe diz: «Eu acho que meu pai teria te amado». Ann responde: «Você não pode imaginar como o que diz é agradável de escutar… Meu pai não me amou». E no final do filme, na sepultura de sua mãe, ela percebe que seu pai vem em sua direção. Ela foge correndo. Ele havia partido quando ela tinha seis anos. Ela volta em direção a ele e aceita acompanhá-lo para comer uma lagosta num café. Senta-se de frente para ele: “Você poderia ao menos ter dado um sinal. Fazer como todo mundo… Enviar um cartão de Natal! Ou de Thanksgiving! Ou de Rosh Hashanah!”. Ela o escuta atentamente explicar sua saída, diante do insuportável de ter traído os seus, sua família judia, se escondendo num casamento que não tinha nenhum sentido para ele. «Eu faço muzak [música ambiente, fácil de escutar]. Você faz música… Você sabe. Eu admiro você. Eu aprecio sobretudo o segundo disco que você gravou».

Que nós reencontremos um pouco de sentido na ligação desta mulher a seu pai, não quer dizer que tudo toma sentido. Villa Amalia é antes de tudo um filme «sensorial» e pulsional. Os homens se encontram frequentemente em torno da mesa e Benoît Jacquot nos contou que, para a última cena, ele encomendou lagostas em abundância. Ele quis que toda a equipe da produção comesse como este pai. Nosso olhar é fascinado pelas metamorfoses de Isabelle Huppert ou se perde na contemplação. Nós vivenciamos concretamente e fisicamente os deslocamentos e a busca desta mulher com quem nos escutamos também, em silêncio no carro, O solitude, poema escrito por Katherine Philips no século XVII, transformado em música por Henry Purcell e cantado por Alfred Deller. Para Benoît Jacquot, que também produziu um filme sobre este cantor-músico excepcional, sua voz de contra-tenor é «uma voz masculina que cede algo ao feminino».

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*MUNDOS POSSÍVEIS*

VISTO NA TELEVISÃO!

Jean-François Leimann

Acontece de um fato local e provisório tomar a proporção de um “fato social total” no que ele envolve, num pequeno espaço e por pouco tempo, todas as dimensões da ordem social na qual se inscreve. Uma coisa deste tipo se produziu, durante alguns dias, num colégio do Val-de-Marne. O incidente está encerrado, certo, mas ainda ressoa. Pode-se interpretá-lo, ao preço de alguma flexibilidade teórica, como uma astúcia da razão: por uma paixão individual, uma derrapagem debaixo da escada, um erro rapidamente retificado, a sociedade toma em um ponto uma antecipação sobre ela mesma


Numa manhã, todos os alunos e toda a «equipe» (da qual faço parte) desse colégio descobriram que os telões que informam a ausência dos professores, agora informam também os motivos das ausências. Isto dura alguns dias. Finalmente nós soubemos, por ter perguntado, que não foi do diretor do colégio a iniciativa dessa difusão (mesmo que evidentemente seja o responsável): uma outra pessoa, que não tinha o poder de decidir, o fez, acreditando sem dúvida que tal ato poria em relevo os assuntos cotidianos e politicamente neutros. Dois pontos indissociáveis gritam aqui a verdade de nosso tempo: que alguém possa, sem ser «designado», «designar» informações que produzirão tal efeito, e que isto não tenha nada de incongruente para a «equipe» envolvida (ninguém acreditou que se tratava de um erro: foi um fato, e não um acontecimento, ele suscitava cólera, e não surpresa).


Para o pouco tempo que a experiência durou, as categorias listadas foram soft: «estágio», «saída», «doença». Mas havia algo que tendia ao infinito: o íntimo é inesgotável. Então, antes de descobrir que o topo da hierarquia não estava neste ponto de paixão da transparência, tivemos tempo de imaginar toda sorte de motivos, tivemos tempo de colocar as coisas no pior (e rir).

Alguns motivos de ausência foram imaginados: «rompimento amoroso», «horóscopo ruim», e, porque não, «detenção» ou «acusação» para um professor envolvido em prestar algumas contas? Um pouco de sagrado, de alguma forma: nós poderíamos admitir que um enterro não aparecesse com este nome, mas que fosse classificado como «saída».

Claro que, no interior da categoria «doença» todas as derivações são possíveis (“depressão grave”, “scanner”, “depressão leve mas incompatível com a profissão da voz”, etc.). A palavra «estágio» também foi motivo de comentários. Estágio de formação? Talvez, mas porque não imaginar talvez um estágio de recuperação dos pontos da carteira de motorista? A idéia é sugestiva: este homem com quem eu cruzo todos os dias sem conhecê-lo perdeu seus pontos na habilitação, o álcool talvez não esteja muito longe disso, e toda a mitologia que se prende a seus vapores (a solidão, um boêmio que não soube parar…). Enfim, na era da avaliação dos professores pelos seus diretores (porque este é o projeto do governo) a categoria «blefe» poderia nos atingir, aceder à dignidade de conceito administrativo, quando a justificativa dada para uma ausência é uma tautologia: «eu não estava lá porque eu não estava lá».

Como tais coisas tornam-se imagináveis? Na base – a idéia está na moda – de uma nova formulação do contrato social. O engajamento que «corresponde» a esta ordem social parece sustentar, longe das sutilezas concebidas por Hobbes ou por Rousseau, uma franca e breve fórmula: «sem segredos entre nós», porque no centro de tudo isso tem certamente a maneira pela qual nós maltratamos o segredo.

Eu escutei um dia numa conversa uma definição deslumbrante de segredo, para a qual eu nunca encontrei rival escrita: «um segredo é algo que nós dizemos a uma única pessoa as vezes»! Esta definição justa e engraçada, que vai longe no problema de apresentar o segredo como ele é e não como ele deveria ser, foi, entretanto, feita em pedaços pela época, que produziu o «conceito» agora comum e socialmente valorizado de «segredo compartilhado»: o segredo não desliza discretamente de um para o outro, mas a polícia, a escola, o hospital assumem e reivindicam «cruzar» seus dados, «compartilhar a informação» em prol de uma política antidelinquência pela qual, salvo se fossemos daqueles que vêem o mal em todos os lugares, seríamos solicitados a reconhecer que o fim justifica os meios.


Presos como estamos nesta era onde a transparência é apresentada como um valor absoluto, como se isso fosse óbvio (a revista le diable provavelmente dedicou um número ao tema), nós conseguimos não nos surpreender deste passo a mais: que o segredo não seja apenas mais «compartilhado» mas também publicado…

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Tradução: Nayahra Fonseca Narciso Reis

Revisão: Maria do Carmo Dias Batista

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