19 de janeiro de 2012

LACAN COTIDIANO Nº 116 - PORTUGU ÊS

Quinta-feira, 15 de dezembro de 2O11 00h00 [GMT+ 1]

NÚMERO 116

Eu não perderia um Seminário de Lacan por nada neste mundo — Philippe Sollers

Nós ganharemos porque não temos outra escolha — AgnÈs Aflalo

www.lacanquotidien.fr

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Lacan Cotidiano

IMAGE LQ 38

photo Dominique Miller

A VIDA COMO ELA VEM

« Uma presidente do real »

Pierre Streliski Pierre Stréliski

KIOSQUE

Gérard Miller & Philippe Sollers

InstantÂNEOS

A Índia se desenvolve, mas…

Por Dominique Miller

Mumbai


A VIDA COMO ELA VEM

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Uma presidente do real”

Pierre StreliskiPierre Stréliski


Caixa de texto: Mas a razão desta crônica deve-se a uma passagem de seu discurso que ouvi no rádio por acaso, e que me deixou abismado.  Marine le Pen declara: “Eu serei a presidente do real, da volta ao real”.   P. Stréliski. Domingo último em Metz, uma cidade onde seu pai chegou à liderança em 2002, Marine Le Pen, em seu primeiro grande meeting eleitoral, aperfeiçoa a apresentação do seu projeto presidencial. Na Lorena, ela discursa para uma multidão entusiasta de um milhão de pessoas, trajada com um severo terninho preto sobre uma camisa branca com um grande colarinho aberto, o olho azul, o cabelo loiro, o sorriso escarnecedor de seu pai, que recorta a mesma boca fina como um corte. Com ares de uma patrona, a sua apresentação tencionava ser sóbria e séria — nenhuma joia sequer, a maquiagem discreta — para passar esta ideia, que sem dúvida é a base da imagem que ela quer promover: a de um ser responsável, e não a de um galanteador irritado; a de uma mulher de 44 anos, presidenciável e decidida. Curiosamente, no entanto, ela havia escrito em 21 de novembro último uma carta ao Primeiro Ministro, solicitando a revogação do

artigo 7 da lei de 6 de novembro de 1962, relativo à eleição do Presidente da República, decretando a obrigação de publicar os nomes dos prefeitos que deram suas cartas brancas aos candidatos. Estaria a prezada Marine preocupada e insegura em não contar com o apoio de sua cota de 500 prefeitos, caso seus nomes fossem publicados? Decididamente, a respeitabilidade da Frente Nacional não está ainda bem assegurada, apesar de todos os esforços feitos para provar o contrário. Marine Le Pen escolheu, desta forma, como timbre do seu papel de carta, um cartel tricolor sustentando, sob o seu nome, escrito com uma tipografia elegante, o lema: “A voz do povo, o espírito da França”. Brasão chique e forte, como o grande painel atrás dela quando de seu discurso em Metz — painel este evidentemente também azul, deixando entrever em segundo plano o esboço de uma costa com um pequeno porto e talvez um farol na noite, sobre uma linha de horizonte separando um mar de óleo azul escuro e a noite de um céu azul mais claro. Limpidez e serenidade aparecem assim atrás da candidata frentista, numa analogia perturbadora e paradoxal (Ela é paradoxal?) com o célebre cartaz, onde uma cidadezinha circundando um discreto sino assegurava à França, que elegeria François Mitterrand, uma “força tranquila”. O oceano tranquilo substituiu a pastoral e passou-se do verde rural ao azul marinho, mas a mensagem é idêntica: “A voz do povo, o espírito da França”. Mais Caixa de texto: E ali, onde o seu pai pretendia fazer do real uma fantasia — é o caso do detalhe dos campos de concentração:  Real = Fantasia —, Marine Le Pen faz de bom grado a operação inversa: ela diz que a fantasia é o real — Fantasia = Real.    P.S.   abaixo, em caracteres menores: “Um projeto patriota para a França dos esquecidos”. Vou poupá-los do discurso da candidata. Seu endereço é duvidoso. “Que imensa felicidade é vê-los tão numerosos e assim reunidos apesar dos crápulas que bloqueiam a circulação” — é o início do seu discurso. Seus temas são recorrentes: “Eu vou falar aos franceses do seu país”. (E aos habitantes da Lorena, será certamente explorada sem o menor escrúpulo, a dolorosa história da pequena cidade vizinha de Gandrange); o orgulho da bandeira e da pátria; a História, indo de Clovis ao General de Gaulle, passando por Joana d’Arc; insurgindo-se contra o euro e os candidatos falsários – todos passam por ali em um belo jogo de massacre; a denúncia da imigração assimilada à causa da delinquência, dos desaparecidos: “No seu comunicado de Cochin, que Chirac não merecia ler”, “O vento da história varrerá os impostores”; uma farpa contra BHL e Georges Benhamou — mas certamente nem um dedinho de antissemitismo!

Poucos elementos no programa: “a reindustrialização da França” é suficiente para ocupar o lugar, fora este “Não!” virtuoso, brandido com uma postura heróica, e um chamado à revolta, que não cessa, contra o significante-mestre. Marine Le Pen age sob o signo do rancor: “Face a seu Deus triplo A, vocês são triplos nada”. O procedimento é robusto. O discurso capitalista é nefasto, em vez de proceder a um exame crítico da globalização, será pregado o sentimento de perseguição, em um quadro estranho de paranoia dirigida.

Mas a razão desta crônica deve-se a uma passagem de seu discurso, que ouvi no rádio por acaso, e que me deixou abismada. Marine le Pen declara: “Eu serei a presidente do real, da volta ao real”.

Ora! Eis aí uma frase que só poderia soar em orelhas lacanianas! O que é que pode ser “uma presidente do real”? Acreditávamos que o real estivesse mais para acéfalo, como a pulsão, mas é bem verdade que ele comanda, na medida em que ele se faz gozo. Mas poderíamos nós comandá-lo, dirigi-lo? Seria um sonho. Mas justamente Marine le Pen opõe o seu projeto ao sonho que promete o Partido Socialista — “Fazer a França sonhar”. O que ela pretende de fato é acordá-la e conduzi-la, como o Napoleão da Revolução dos bichos (“Votem em Napoleão e a manjedoura cheia”), um combate para expulsar fora do perímetro do poder seus medíocres adversários. Aliás, o seu combate é hábil. Ela poliu as asperezas mais chamativas da época em que seu pai apoderava-se das sobras do Ocidente e da Nova Ordem, nascidos quase que ao mesmo tempo que a filha do “Menhir”, em Maio de 68. E ali, onde o seu pai pretendia fazer do real uma fantasia — é o caso do detalhe dos campos de concentração: Real = Fantasia —, Marine Le Pen faz de bom grado a operação inversa: ela diz que a fantasia é o real — Fantasia = Real (ou seja: ela se engana redondamente). Teria ela por acaso lido L'arrogance du présent de Milner? «O antigo e o recém-nascido não preexistem ao corte, eles são produzidos por ele» (p.158). Maio de 68 mudou o mundo tal como ele era, «A rua empurrou as estruturas até o seu ponto de insuficiência” (p.51). Sem dúvida não. Mas Marine Le Pen recupera o chapéu do Nome-do-Pai, que estava caído por terra e o põe audaciosamente tratando o real com intimidade: “Real, você não é nada, o Real sou eu” diz ela, “Eu tomarei o teu lugar”.

Eu não creio que seja um erro de francês que a fez confundir o real e a realidade em seu discurso. Não, não é a realidade que interessa à Frente Nacional, é antes a recuperação de um real extenuado, gasto demais, e que esgota um povo que gostaria de um quadro1. Estamos certamente longe, na promessa desta configuração, a do príncipe de Orange do qual Blandine Kriegel nos fala em La république et le prince moderne. Longe dos oximoros «levando o desafio sobre a contradição, frustrando a dialética e impondo-se às artimanhas da razão» do que nos fala Pauline Proust em seu comentário deste livro no LQ n° 107. Longe também das notáveis contribuições de Lilia Mahjoub, de Philippe la Sagna e de Éric Laurent na sua conversa com esta autora, propósitos estes que convergem na direção deste ponto de tensão entre a necessidade do significante-mestre e de sua instabilidade.

Aqui, o significante-mestre não será representado ou representante, mas será sim o mestre sádico do gozo. Ao contrário do Prince, Marine Le Pen, apoiada em um cinismo potente, erige uma equação inédita: Delenda2 o inconsciente real e no seu lugar, faz-se a si mesma o significante do real.


Sabemos qual é a profecia de Lacan em 1967: “Nosso futuro de mercado comum encontrará seu equilíbrio na extensão cada vez mais dura do processo de segregação” (Autres Écrits, p.257). É agora. A promessa do real não é de fato uma mentira, é antes uma ironia terrível. A Frente Nacional está creditada com 17% das intenções de voto, 40% deles são dos operários da Lorena. É o terceiro partido da França. Paradoxalmente é um sucesso bem europeu.

1. Quadro político (respeitável) – Nota do Tradutor

2. Delenda est Cartago - Do latim: Cartago seja destruídaNota do Tradutor


KIOSQUE

"RENDEZ-VOUS CHEZ LACAN" em DVD

O filme de Gérard Miller, "Rendez-vous chez Lacan", apresentado pela France 3 há três meses, sairá em DVD no mês de fevereiro.

Mas você pode solicitá-lo desde já através do site:

http://www.gerardmiller.fr

e também recebê-lo, com antecedência, a partir do mês de janeiro.

Com a participação de: Agnès Aflalo, Jo Attié, Guy Briole, Antonio di Ciaccia, Jean Louis Gault, Yasmine Grasser, Alain Grosrichard, Suzanne Hommel, Benoît Jacquot, Éric Laurent, Catherine Lazarus, Anaëlle Lebovits, Clotilde Leguil, Lilia Mahjoub, Jacques-Alain Miller, Judith Miller, Jean-Claude Milner, Martin Quenehen, François Regnault.

Três bônus inéditos: Entrevista com Judith Miller (17min) – Entrevista com Jacques-Alain Miller (15min) – O ponto de vista do diretor (14min)

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Philippe Sollers L'ÉclaircieL'Éclaircie, o novo romance de Philippe Sollers, sairá em 5 de janeiro pelas Edições Gallimard. “Desde o meu primeiro encontro com Lucie, uma fórmula espanhola voltou ao meu espírito: "los ojos con mucha noche", os olhos com muita noite. Os "amores à primeira vista" são raros, à noite mais ainda. Os quadros onde Lucie apareceria, se eu fosse o pintor, deveriam ser invadidos pela intensidade deste negro sem o qual não há clareiras. Negro e halo azulado. Todo o resto, vestidos, calças, joias, responderia a este negro, nudez incluída. Mas a prova, aqui, está nos lábios, na boca, na língua, na saliva, na respiração. Somente quando se beija apaixonadamente, e longamente, é que podemos saber se estamos de acordo. O beijo longo e profundo, eis aí a pintura, eis aí o que é impossível de filmar. Eu sempre chego com dez minutos de antecedência. Eu ouço o elevador, o barulho da chave de Lucie na fechadura, as cortinas já estão fechadas, ação.” Trecho em primeira-mão


INSTANTÂNEOS

photo Dominique MillerA Índia se desenvolve, mas...

Por Dominique Miller

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Sim, estamos no final de 2011 e a Índia se desenvolve. O sinal mais evidente é a onipresença da informática; computadores, Iphones, Blackberrys, acompanham cada cidadão da sociedade civil. Para que um lugar seja frequentável, o Wifi é obrigatório. Mumbai é mais informatizado que Paris… Bem mais ambicioso e apressado, e não é o sol a pino e nem a monção diluviana que esmagam os pedintes na rua e que fragilizam as montagens precárias das favelas, que detêm os business men. Estes se trancam em suas berlinas dotadas de ar condicionado, e percorrem a cidade a toda velocidade, porque o enriquecimento é para eles uma prioridade. Os outros também correm, os mais pobres em ônibus vermelhos à inglesa ou ainda em Rickshae, os menos pobres em taxis que estão por toda parte. A maneira de dirigir dos indianos já é célebre por sua intrepidez que beira à inconsciência. Ela é, a meu ver, sintomática deste país frenético. Os primeiros serão os primeiros. Sinais vermelhos, prioridade à direita, vacas no meio do caminho, jovens mendigando, famílias de 4 pessoas sobre uma mobilete com a mãe sentada atrás como uma amazona, levando nos braços seu bebê, carros que surgem de todos os lados, são tantos os motivos para acelerar, a despeito de toda prudência e cortesia. O uso indiscriminado da buzina é lei.

Temos então, sim, que admitir que a Índia progride. O progresso se impôs neste país como um protecionismo glutão. Tudo é bom. Compra-se a empresa no exterior, nutre-se de suas inovações, que são incorporadas e conservadas. Depois ela é fechada, ignorando os dramas humanos e econômicos que isto gera no exterior. Para solidificar este protecionismo, o país impõe regras draconianas para limitar a instalação de empresas estrangeiras. Mas sem que isto impeça, apesar de tudo, que estrangeiros decididos a respeitá-las, trabalhem neste país. Conheço três jovens empreendedores franceses que venceram com muita paciência e inteligência. E, o que é uma proeza, sem compactuar com a corrupção!

A corrupção na Índia tornou-se uma instituição. Ela gangrena a sociedade em todos os níveis. Para obter uma licença na área de restauração, uma licença de construção, para escapar da prisão preventiva, ou simplesmente de uma multa de trânsito, etc. Um escândalo, em 2008, com relação às licenças para a telefonia móvel, “o escândalo 2G”, que implicava burocratas, resolveu-se com a demissão e prisão do ministro. A corrupção destes funcionários custou ao estado 39 bilhões de dólares! O progresso a qualquer preço tem seus limites.

Com relação a esta sede de progresso que se apresenta como imperativo moral e econômico ao mesmo tempo, só nos resta assinar embaixo. A dificuldade, assim como acontece na China, é que em certas zonas, o povo pobre é largado sem acesso aos recursos básicos (faltam alimentos, água, eletricidade). Um povo cuja tradição de castas e crenças religiosas faz com que as pessoas se mantenham em uma docilidade visível e incompreensível. Passeie como turista em Banganga, que é um enclave popular em um dos bairros mais ricos de Bombaim, e você encontrará somente amabilidade entre os habitantes. Enquanto que ali, bem ao lado, prosperam bilionários como Mittal, Tata ou Mukesh Ambani, o homem da casa de um bilhão que nunca foi habitada, porque uma vez terminada a construção, ele não gostava mais dela.

Este quadro autêntico e pessimista pode decepcionar, porque no ocidente esperamos muito deste desenvolvimento indiano. Alguns pensam, e não são os menores, a saber, na diplomacia europeia, que a sociedade indiana poderia ser o nosso futuro, o futuro dos ocidentais, no sentido de que o fosso entre as classes sociais é cada vez mais evidente, em razão do empobrecimento das classes médias.

É necessário atenuar este triste quadro com a presença influente das ONG, e pelo aumento de movimentos de oposição que são – e este é um fato novo – cada vez mais transmitidos pelas mídias. Assim, este homem de 74 anos, Ana Hazare, pede que seja criada uma autoridade independente contra a corrupção, fazendo greve de fome; a tradição subversiva da Índia. Ou ainda este outro indiano, Baba Rawdew, que combate a fuga de capitais para os paraísos fiscais. Há enfim este exemplo da réplica da Corte Suprema, constituída de juízes íntegros, que luta contra a corrupção.

Para os autores

As propostas de textos para serem publicados no Lacan Cotidiano devem ser encaminhadas por e.mail ou diretamente no site http://www.lacanquotidien.fr/blog/, clicando em "proposez un article". As fontes devem ser Word Police: Calibri Tamanho dos caracteres: 12 Entrelinhas: 1,15 Parágrafo: Justificado Notas de pé de página: a mencionar no corpo do texto, e no fim dele, police 10


Lacan Cotidiano

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NOS 7 DIAS DA SEMANA INFORMA E REFLETE A OPINIÃO ESCLARECIDA

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Tradução: Daniela de Camargo Barros Affonso

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