20 de maio de 2009

[EBP-Veredas] Entrevista de Eric Laurent

PSICANÁLISE E FELICIDADE EM TEMPOS DE CRISE

FABIOLA RAMON

COLABORAÇÃO PARA FOLHA, EM PARIS

Um dos principais nomes da psicanálise mundial, o francês Éric Laurent, discípulo direto de Jacques Lacan (1901-1981), defende que o método criado por Freud "é um discurso de crise, não de conformismo" e, por isso, ao contrário do que dizem seus detratores, está vivo, se contrapõe à febre dos medicamentos tarja preta e pode ajudar os indivíduos a atravessar o atual momento de instabilidade do mundo.

Segundo ele, enfrentamos "a maior crise desde 1929, na qual se revela a mentira da civilização que nos dizia que tudo estava em ordem, que havia governantes sábios que cuidavam de todos, que os mercados permitiriam uma aposentadoria feliz".

Laurent, que participou da fundação da École de la Cause Freudienne, em Paris, nos anos 80, e é autor de vários livros, _ entre eles, "Sociedade do Sintoma" (ed. Contracapa, 2007), denuncia o que chama de "medicalização da existência", mas admite que um tratamento analítico de longa duração não é indicado para todos e aponta a necessidade de a psicanálise estar atenta às transformações do século 21.

Leia a seguir a entrevista concedida à Folha em seu consultório em Paris:

A psicanálise ficou conhecida como um método longo e caro. Em um mundo que demanda respostas rápidas e tratamentos breves, ela não está fadada ao fracasso?

Ela não estabelece prazos, é uma maneira de se refletir sobre a vida e os impasses da existência, vai além de um tratamento. Após a Primeira Guerra Mundial, em 1918, percebendo que o conflito havia arruinado a Europa, Freud propôs a abertura de centros psicanalíticos gratuitos. Concomitante a isso, houve a disseminação da idéia de que somente a burguesia podia pagar uma análise. Ainda hoje percebemos esses dois movimentos: tratamentos que se endereçam à classe média, quando se busca um psicanalista em um consultório é fácil encontrar um, e centros de atendimento gratuitos, aos quais as pessoas podem recorrer nos momentos de instabilidade dos laços sociais. É preciso questionar a idéia de que a psicanálise é um tratamento longo e caro. Ela é uma aventura pessoal, deve ser vista como as histórias de amor, que podem ser rápidas e múltiplas, ou aventuras mais longas, nas quais o objetivo é mudar o estado das coisas no interior de si mesmo. Assim é a psicanálise: a cura como aventura pessoal.

Muito se diz que a psicanálise está em crise. O que ela pode oferecer, então?

A psicanálise pode ser algo útil às pessoas decepcionadas com fabricantes e vendedores de felicidade. A única dignidade dela é estar em crise desde sempre. É um discurso de crise, e não de conformismo, conforto e tranqüilidade. Estamos atravessando a maior crise desde 1929, na qual se revela a mentira da civilização que nos dizia que tudo estava em ordem, que havia governantes sábios que cuidavam de todos, que os mercados permitiriam uma aposentadoria feliz. São momentos nos quais a angústia nos atravessa e nos remete a escolhas e a saber o que nós queremos para o futuro. O século 21 será apaixonante, sem dúvida tão terrível quanto os anteriores, mas, de uma maneira nova. Será necessário estar atento a essas novidades. A psicanálise deve ajudar a compreendê-las.

Por que hoje há uma busca desenfreada e imediata pela felicidade?

Todo mundo quer ser feliz. Essa é uma demanda que se tornou legítima após o iluminismo, quando, contrariamente à religião, o próprio pensamento abriu a possibilidade de uma felicidade terrestre, e não somente uma salvação eterna. O primeiro estado moderno, os EUA, incluiu na sua constituição a busca da felicidade como um pedido legítimo. Entretanto, conhecemos ao longo desses dois séculos diferentes atitudes para entender porque é que os humanos não a encontram. Uma delas é: "porque as pessoas têm maus hábitos, vamos mudar seus comportamentos", abordagem difundida pelo comportamentalismo desde 1950, com Skinner, que explicava que a liberdade é um luxo que a humanidade não pode ter, pois se as pessoas fazem o que querem, elas terão maus hábitos.

Isso aconteceu ao mesmo tempo em que se realizava o comunismo, que queria mudar os comportamentos e proporcionar a felicidade ao homem novo. Ambos configuraram uma gestão autoritária das atitudes em nome do bem-estar.

Nos anos 60, ao contrário, houve uma liberação e a rejeição à servidão autoritária. Atualmente, há um retrocesso, que busca mudar atitudes com a volta da burocracia sanitária. Donde a idéia da gestão de populações: câmeras de vigilância, identidade biométrica, isso é um sonho para um administrador. Com o melhor conhecimento e mapeamento da população, podemos enquadrar as pessoas em categorias de gênero, idade, raça, etc.

O que o senhor entende por "medicalização da existência"?

Michel Foucault mostrou que a medicina contemporânea trata populações. Ela não trata mais um por um, como era no século 19. Hoje, ela é "baseada em evidências" e fundamenta-se em estatísticas para produzir categorias homogêneas. Nesse modelo é necessário desconsiderar a particularidade dos casos, o que combina com a medicalização de toda a existência. Por exemplo, o comportamento no trânsito, a maneira de fumar, a forma do amor, com sexo ou não. São termos abordados como problemas epidemiológicos: o tabaco, a droga, a violência familiar, etc. Questões antes deixadas ao sistema jurídico, até então tidas como de ordem individual, são agora apropriadas pela gestão das populações e pela medicalização da existência.

E as doenças que crescem cada vez mais, como a depressão, por exemplo?

Desde que a medicina declarou que em uma população 25% de pessoas podem tornar-se deprimidas, colocou-se um problema de evolucionismo. Como a espécie humana pode sobreviver e conservar uma disposição fatal que faz com que um quarto das pessoas possam ter algo que as deixem deprimidas? Ou bem a categoria está superestimada, ou temos um problema, o que mostra o limite desta abordagem.

O senhor acha que há um abuso de medicação?

As pesquisas realizadas pelos laboratórios farmacêuticos indicam efeitos formidáveis das medicações. Por outro lado, estudos feitos por sistemas de saúde mostram o avesso disso, como o do National Institut of Menthal Health, nos EUA, que, no último publicado, apresentou que os anti-depressivos, na maioria das vezes, eram pouco superiores aos placebos. Algumas vezes eles atingem objetivos contrários. Então, coloca-se uma tarja preta na caixa alertando sobre os riscos. Sabemos também que os jovens que passam ao ato assassino nos EUA freqüentemente já foram medicados.

A civilização aceita perfeitamente o uso contínuo de remédios, mesmo sendo prescritos de uma maneira pouco responsável. Isso vem acalmar uma angústia. Não se sabe muito bem o que fazer com ela e abusamos da medicação. Então, as instâncias de regulamentação da saúde [o estado] tentam desesperadamente diminuir o consumo e indicam aos médicos para que enviem as pessoas para uma psicoterapia, geralmente comportamental, antes de submetê-las a um remédio.

O medicamento está em todo lugar, somos "a civilização da medicação". Se você vai a Pequim ou a qualquer outra cidade verá que o corpo está casado com eles nos aspectos mais ordinários da vida [viagra, analgésicos, estimulantes etc].

Mas o desenvolvimento da ciência não é algo importante? A psicanálise é contrária à ciência?

A psicanálise é um discurso que não supõe outro saber senão a ciência: a psicanálise acompanha a ciência, e, ao mesmo tempo, pode permitir ao sujeito se reencontrar nas suas exigências contraditórias e nas contradições do próprio saber científico, que se revelou como uma verdadeira pulsão de morte que ignora as particularidades. O saber de "você deve entrar nesta categoria, nós vamos tirar de você os comportamentos que não dão certo e você vai se encontrar, enfim, muito bem nela". E, assim, você será morto subjetivamente, é o que George Orwell imaginava para essa sociedade que quer, pelo saber, reduzir cada um a uma transparência completa.

Fabiola Ramon é psicanalista, mestre em ciências médicas pela USP e professora da Universidade Metodista de São Paulo



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