26 de outubro de 2014

LACAN COTIDIANO. Entrevista de Jorge Léon (I), por Hervé Castanet

Os leitores de Lacan Quotidien (LQ 411) já sabem : a voz de Jacques Lacan soou em 5 de julho no Mucem, na competição oficial do Festival International de Cinema de Marseille (FID) na abertura, numa tela negra, do filme de Jorge Leòn, Before We Go. A sala estava repleta e notou-se a presença da ministra em exercício. No dia seguinte, reencontramos o cineasta para uma longa entrevista. H. C. 

Hervé Castanet: Seu filme se abre com a voz de Lacan, enquanto os créditos rolam sobre o fundo negro. Por que essa escolha ? 

Jorge Léon: Em minha visão, por um lado ela, a voz, abre alguma coisa do inconsciente e, por outro lado, é a voz de Lacan num momento preciso, a conferência de Louvain em 1972, e sobre um objeto preciso, a questão da morte. Eu havia ouvido há muito tempo e, quando comecei a trabalhar nesse filme, voltei muito naturalmente a ela. De fato, ela nem sempre esteve nesse lugar no filme: ela andou, deslocou-se durante a montagem. Num determinado momento, ela estava no coração do filme, mas num lugar um pouco forçado: Noël, um dos três personagens, foi filmado olhando a televisão, mas nada se via – esse não era Lacan – e, no campo contrário, eu havia montado a imagem da tela mostrando o rosto de Jacques Lacan palestrando … Isso ficou forte, pelo que ele dizia, sua presença, o tom de sua voz, mas eu fiquei com a impressão de que havia aí, algo que não ficava muito justo, porque eu fazia alguém olhar imagens, que ele não havia realmente visto. Depois, durante o trabalho, sua voz se impôs como abertura. Ela saiu do coração do filme, para assumir uma forma de prólogo. 

H. C. : Você não teve necessidade da imagem de Lacan… 

J. L. : Sim, e subitamente, sua voz me apareceu muito mais forte sob o fundo negro, como uma abertura. É o negro, mas é também o genérico, durante o qual aparecem os nomes e prenomes das pessoas, portanto isso é muito importante. Há aí alguma coisa que ressoa em relação ao que Lacan diz da morte: esta noção de ausência e, ao mesmo tempo, os nomes que permanecem … 

H. C. : Lacan diz então que nós só podemos nos manter na vida, porque temos a ideia da morte, pois, diz ele em outro lugar, não nesta conferência, uma vida sem a morte conduziria a uma espécie de insuportável, até mesmo loucura – ele relata o sonho de uma jovem, caindo de uma vida para outra vida, sem que a morte pudesse interrompê-la. Você estaria de acordo em dizer que esta frase de Lacan em seu conteúdo, orientou o filme ? 

J. L. : Sim, absolutamente, ela é essencial … O filme não é uma demonstração ou uma ilustração do que Lacan diz, mas sobretudo, um prolongamento. Assim, ela ressoa as questões da angústia e do terror, muito presentes durante a filmagem. O que é muito forte também, é que essa voz vem da tela : ela emerge como de um além túmulo e – eu já ouvi isso de parte dos espectadores – é uma voz que … congela; isso os confronta com algo muito angustiante. Isso não me espanta, mas para mim, é mais um wake up, algo que acorda. 

H. C.: O seu filme apresenta três pessoas, dois homens e uma mulher ao final da vida. Seu projeto era fazê-los sair do lugar de cuidados paliativos, para levá-los ao teatro de la Monnaie, um lugar de prestígio, de criação, e fazê-los encontrar os artistas ? 

J. L. : Exatamente, era verdadeiramente deslocar-se do espaço terapêutico para migrar, com esta necessidade, este desejo de travessia. Desde o início, antes mesmo de saber se o filme seria realizado, eu lhes tinha dito que gostava da ideia da migração. Que a fronteira que nós atravessaríamos não fosse apenas uma fronteira territorial, mas igualmente uma fronteira metafórica. 

H. C. : Vocês lhes dá no filme, e no que constrói com eles, um lugar de personagem. Como se, de algum modo, você tratasse do mal-estar deles, seus sofrimentos, momentos extremamente penosos para a – você emprega a palavra – ficção. 

J. L. : Sim, isso é essencial. É a intenção primeira: eu quis me retirar, um pouco, da tirania da realidade. Eu tenho a impressão que, quando mais se está sobrecarregado pelos elementos ligados à doença, e mais se permanece congelado por esta realidade, que acaba por nos paralisar, uma realidade mortífera acontece de fato. Não se trata para mim, de modo algum, de excluí-la, de negar esta realidade, pois que, ao contrário, para mim ela é extremamente presente. Era, antes de mais nada, uma questão de autorizar-se a transformá-la. A ficção, portanto, tem todo seu lugar, e diante do cinema, que foi um meio de chegar em minha relação com eles. 

Por exemplo, antes mesmo de iniciar o projeto do filme, enquanto eu trabalhava com muitos residentes do lugar de cuidados paliativos, num atelier sobre um projeto de livro de retratos, eu lhes tinha colocado a questão: « Se vocês fossem levados a reviver suas vidas, quem ou o que, vocês seriam?» – e não: «Agora vocês vão morrer, que irão vocês se tornar ...» Esta proposição foi acolhida com muita leveza por parte de todos os residentes, cada um começou a sonhar. O jogo era o de criar um retrato deles que fosse, que estivesse mais próximo da representação, que eles se faziam de uma espécie de retorno ... de renovação deles mesmos. Então, evidentemente, com propostas como aquela de um gato, tal como se sonhava Lydia, estava fora de questão maquilá-la com bigodes, mas nós criamos uma decoração suntuosa, muito teatral, com peles, gatos que escalavam um pouco por toda parte, e ela, alongada como uma diva. Para cada retrato, os residentes explicavam a razão de sua escolha e estas traziam sempre, finalmente, à realidade do momento, quer dizer a que eles atravessavam, a que eles viviam, ao sofrimento que eles vivem – para Lydia, a do gato, é porque os gatos recebem constantemente carícias e ela teve falta disso toda a sua vida. Através da ficção dos retratos, chegou-se a tocar em coisas extremamente essenciais. Com Lydia, era o tátil e isso está muito forte no filme, porque se sente que ela tem muito a demanda de um contato. Nada desses retratos se encontra, falando propriamente, no filme, mas foram etapas que me levaram a precisar a dimensão da ficção. Os meios empregados são muito modestos, porque se encontram, ao mesmo tempo, numa economia e configurações relativamente precárias, frágeis.

Esta ficção instala-se diferentemente em função dos indivíduos e de sua singularidade. Cada um vem com seu imaginário, mas igualmente com seu cotidiano. Para as cenas em que eles estão em suas casas, não havia dúvida, eu lhes observava primeiro : eu havia lhes pedido que escrevessem uma carta na qual descrevessem seu dia, seu cotidiano, não apenas o mais precisamente possível, mas também sabendo que o que eles escreveriam era o que eles aceitassem que eu visse, que eu filmasse. Estas cartas esboçam, determinam, o modo do filme de cinema : eu pensei os planos e as sequências em função do que eu lia, daquilo que me era dado.

H. C. : Quando você fala de ficção, me parece que eles estão aí para construir algo que não está lá. Claro, eles abordam seu sofrimento, mas você lhes permite construir uma ficção. É um imaginário ativo, não se trata de simplesmente de esvaziar seu saco, mas de, esvaziando-o, construir quase um cenário. Você os fez não apenas atores, me parece, mas autores de sua própria vida. 

J. L. : Absolutamente. Era muito claro que me seria necessário, que eu queria estar a serviço disso com, apesar de tudo, um saber ligado à prática do cineasta. Eu vinha com estas ferramentas, mas eles vinham com seu próprio saber e sobretudo, com seu próprio enigma, que é uma dimensão essencial para mim. O que me atraiu talvez, seja  um enigma totalmente fantasmático, mas havia aí alguma coisa em relação à radicalidade e um saber da parte deles. Não um saber intelectual : alguém, um dia lhes disse : « Sinto muito, mas a ciência nada mais pode fazer por você ». Sem saber dizer, nós nos sabemos mortais, mas a mim, por exemplo, ainda não se fez aquele anúncio. A meus olhos, isso os movia para uma espécie de zona enigmática e e eu quis, verdadeiramente, me aproximar deste enigma. Eu não tive resposta, não procurei uma em todos os casos, formulada, mas isso tem sido o motor. A partir do momento em que eu penetrei neste espaço, eles vieram com seu saber, e me informaram, de um certo modo, progressivamente, de uma série de elementos. Mas tudo é representado de modo extremamente frágil, tênue... às vezes era uma conversação, às vezes uma situação...



H. C. : Você evita o que teria podido ser a armadilha do tema e dos personagens, seja o testemunho sobre sua doença ou as discussões psicológicas. As intervenções pragmáticas de seus personagens saem de um discurso prático, que não esta aprisionado numa psicologia, que não envia a uma explicação sobre a dor, o insuportável. Você insiste nos movimentos, situações. Me parece, ao menos a partir de nosso campo, que esse é seu modo de cortar certa psicologia, que viria com questões ou frases feitas. 

J. L. : Estava fora de questão entrar nessa dimensão. Em determinados momentos da filmagem, colaboradores exprimiam o desejo de compartilhar ; essa relação com a morte emergia em todo o mundo e eu senti que havia aí uma necessidade de palavra. Eu me disse: filmemos. Eu queria manter isso numa dinâmica criativa, sem saber se isso teria seu lugar no filme. 

E com efeito, quando as pessoas começaram a se exprimir através de palavras, isso não era em absoluto o que eu desejava e, tanto encontrei pessoas absolutamente formidáveis, quanto desde que este espaço foi criado, esta palavra não era, a meus olhos, uma palavra verdadeira. Eu tinha a impressão de que eram um pouco as coisas recolhidas do exterior, do coletivo – o «eu (je)» jamais aparecia. Eu disse a mim mesmo, não posso, não conservarei isso. Sobra talvez um fragmento dessa sequência: a cena final no telhado … 






A seguir…
 
Transcrição feita por Françoise Biasotto e Patrick Roux 
em 10 de julho de 2014.

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