17 de outubro de 2018



Movimento Zadig/Brasil - Doces Bárbaros
Dois textos da Conversação de 10 de outubro de 2018





Não existe democracia sem política!
Lucíola Freitas de Macêdo (Presidente da EBP)


Posicionar-se
Algumas palavras sobre o posicionamento da EBP através das suas instâncias, em face ao delicado momento que estamos vivendo: estamos hoje aqui presentes, presidente e diretor geral da EBP, unidos à Movida Zadig nesta ação que tem o formato de uma conversação. A escolha deste dispositivo não é casual. A conversação analítica é, em si, um ato político, no sentido mais estritamente lacaniano do termo. Neste dispositivo cada um é convidado tomar a palavra não a partir de identificações coletivas, mas desde a sua posição de sujeito, o que implica impreterivelmente um desejo que não seja anônimo, e lugar vazio da causa analítica. Este motor não é o Um unificador do grupo, mas o desejo do analista, que se urde da disjunção entre o ideal (I) e o objeto a. Isto somente se perfila se o que se enuncia se faz a partir de uma divisão subjetiva, incluindo-se aí, o resto não absorvido pelas identificações e pelos ideias.  
Nessa perspectiva, a democracia não se restringe a mais um significante mestre na série infinitamente metonímica vociferada pelos meios digitais. A democracia cumpre, em uma conversação analítica, ela própria o lugar de causa, situando a cada um dos que dela participam, em seu lugar de sujeito dividido[1]. Por isto entendo que posicionar-se em  política, e no âmbito da experiência de Escola, não quer dizer defender uma posição partidária. Isto é o que devemos fazer como cidadãos. Posicionar-se é nadar na contracorrente da tormenta segregacionista que inunda os espaços públicos e privados, varrendo os meios tons, neste momento de nossa civilização. É resistir incansavelmente à solução fácil das polarizações e das rupturas. Posicionar-se é, ainda, lançar-se decididamente na realização de uma continuada mobilização e diálogo com o campo político. Para tanto, Jacques-Alain Miller, instituiu, no dia 14 de maio de 2017, a movida Zadig - Rede Política Lacaniana Mundial, como uma extensão da Escola ao nível da opinião pública[2].

Democracia sem política?

Estamos há poucas semanas do segundo turno das eleições no Brasil. O candidato de extrema-direita, munido de um discurso de cunho explicitamente fascistóide, obteve já no primeiro turno nada menos que aproximadamente cinquenta milhões de votos do eleitorado brasileiro. Esta imensa parcela da população avaliza para a presidência do país alguém que pretende se eleger incitando abertamente o uso da força bruta e da violência, disseminando o ódio, fazendo apologias à tortura, à homofobia, ao racismo ao machismo e à segregação, tudo isto em nome do bem da nação, da moral e dos bons costumes. As forças que poderiam desconstruir, mostrando o absurdo e a insanidade deste tipo de discurso, não se fazem escutar. Vale ressaltar que, ao eleger-se por meios democráticos como presidente do Brasil, a quem encarna tais bordões, legitima-se, ao mesmo tempo e como consequência, certo tipo de discurso.

Diante deste estado de coisas, uma pergunta torna-se inevitável: o que está acontecendo com as democracias, hoje? Que tipo de desastrosas mutações estão em curso? Como chegamos, no Brasil, a este ponto? É notório que os pilares da democracia, tal como praticada no século vinte, encontram-se fortemente abalados. Observa-se pelos quatro cantos do planeta a ascensão de representantes de uma extrema direita reacionária se elegerem democraticamente. Há certamente movimentos de cunho neofascista, que se nutrem das fixações residuais e não ultrapassadas dos grandes conflitos mundiais do século XX. Mas diferentemente dos movimentos fascistas do século passado, há nas manifestações obscurantistas deste início de século, mais diferenças que pontos em comum, dificultando a sua leitura e interpretação, o que levou o cientista político Enzo Traverso a nomear este conjunto de movimentos de “pós-fascistas”[3]: seu conteúdo ideológico é flutuante, instável e frequentemente contraditório, podendo abarcar ideias e crenças francamente antinômicos. Em lugar das diferenças e tensionamentos ideológicos, ganham terreno polarizações de todos os tipos, reduzidas a nós conta eles, a partir da identidade personificada por um líder autoritário.

Temos problematizado as questões em jogo na fragilidade da democracia, advindas de transformações ocorridas no interior dos próprios regimes democráticos. Nota-se uma destituição da política enquanto instância de mediação, o que não é sem relação com as mutações do simbólico como eixo sobre o qual as democracias se sustentaram durante o século XX.
No caso do Brasil, o incremento dos apelos reacionários, ao modo de uma onda ultraconservadora, se alastra no vácuo de uma crise da política representativa e de uma perda de confiança nas instituições. Nesta onda, uma horda de cidadãos não propriamente fascistas, mas decepcionados com os rumos da política, se amalgamam e dão corpo ao núcleo duro do pós-fascismo, que se alastra sem freios. Este veio autoritário e dogmático que desponta na subjetividade da época requer leitura e interpretação.

Políticas da palavra, política do sintoma

A psicanálise é uma prática da palavra, e enquanto tal, perturba fixações em oposições estanques, indicando outro modo de fazer com os opostos que se repelem, apontando ali onde uma polarização se fixa, a torção própria à extimidade. Somente partindo-se daí, é possível forjar-se uma política da palavra que esteja à altura da nossa prática, e de nossa época.

Algumas questões ressurgem, nestes últimos tempos, e à medida que a nebulosa obscurantista vem avançando e se disseminando em nosso país: em tempos pouco afeitos à leitura do inconsciente, com quais recursos a psicanálise far-se-á presente no campo político? Quais usos faremos das nossas ferramentas de sempre: a palavra e a experiência analítica?      
   


O psicanalista e a política
Luiz Fernando Carrijo da Cunha (Diretor da EBP)

Começo por um   pressuposto: O discurso fascista está instaurado – Claro que o andamento do processo eleitoral ainda não terminou. Mas independente de seu resultado, uma perda já se processou, e tomar tal perda como intrínseca à estrutura do discurso que o mal-estar anuncia, é mister ao psicanalista. Éric Laurent, em sua entrevista feita por Fernanda Otoni para divulgação do XXIIº EBCF, assinala, à guisa de uma interpretação desse fenômeno discursivo que avança em todo mundo, que se trata de “uma vontade de conservadorismo” em decorrência mesma da queda do falocentrismo que temos vivenciado nas últimas décadas. Portanto, o que vivemos hoje como realidade no campo da política no Brasil, é uma resposta a isso , mas através de um “fora da norma”, como assinala Laurent e isso, certamente nos chama a atenção na medida em que há aí, nesse “fora da norma”, uma alusão a um empuxo para fora da ordem simbólica, colocando a descoberto todo semblante que funcionaria como um agente “apaziguador” do mal-estar.
Logo, duas vertentes se abrem, nos levando a retomar Freud em sua “Psicologia das massas”, para extrair dali sua atualidade. Chama a atenção, entretanto, a horizontalização sem limite: Por um lado, a fascinação cega advinda da submissão a um ideal higienista e portanto, disseminador do ódio; e por outro a “indignação”, ancorada tanto na denúncia da impostura, quanto no medo. A questão é que um polo alimenta o outro, numa espécie de batalha sem fim onde fatos novos não interferem na dinâmica, não produzem brechas, mas cada fato novo é reabsorvido na consumição da dita polarização.
Ora, o campo de batalha se constitui, essencialmente, na praça virtual – Não há diálogo, apenas afirmações replicadas ao infinito. As redes sociais protagonizam uma “campanha” cuja capilaridade se torna perniciosa pois não há índice do verdadeiro que se sustente; as “fake News” ganharam o proscênio denunciando o pouco de sentido que sustenta cada argumentação. Quanto mais o horror é replicado e banalizado por um lado, mais a indignação toma conta do lado oposto. – Mas, sim, ainda temos o direito de nos indignar, do contrário estaríamos na mesma ciranda da “banalização do mal”...Entretanto, as respostas a essa indignação não traz o elemento “surpresa” diante do qual teríamos a chance de fazê-lo repercutir de forma diferente alcançando algo verdadeiro na subjetividade de cada um.
Quando estamos identificados a uma ideologia,  a um partido, estamos no registro de fazer existir ou dar consistência ao mestre... e quando se trata de dar consistência ao mestre contemporâneo, não fazemos outra coisa senão endossar a proliferação do ódio e do horror. Eis a questão que nos concerne diretamente no que diz respeito ao “posicionamento” da Escola – Não podemos nos posicionar sem levar em conta estes fatores; ou seja, nosso posicionamento não pode se dar sem o devido distanciamento das identificações – A Escola representa um coletivo, mas, como bem disse J-A. Miller na “Teoria de Turim”, é um coletivo que remete à solidão subjetiva, onde no Um por Um cada qual tem a chance de se colocar em relação ao ponto comum que nos causa enquanto psicanalistas e com isso, também a chance de se distanciar de suas identificações ideais – A psicanálise não é um higienismo ao contrário. Logo, só podemos nos posicionar, nesta ou em qualquer outra situação, tomando o mal-estar a partir do sintoma – É nisso que a psicanálise pode contribuir no campo da política e, toma-la na vertente do sintoma, faz-se necessário consentir que a perda já se instaurou
Em outros termos, se a indignação é um afeto coletivizável, e nisso nos parece muito “natural” que cada membro ou participante de nossa comunidade de trabalho esteja indignado com os fatos, é preciso lembrar ainda que tal afeto processa suas respostas, também de modo “natural”, a partir das identificações. Ou seja, produzir respostas e ações que possam ser efetivas em relação ao mal-estar, requer do psicanalista ou da Escola que o representa, dar uma volta a mais no ponto da “indignação” e do “medo” que se segue como corolário. Entendo que estamos entrando num momento de reflexão onde o que nos interessa é encontrar, na própria psicanálise, instrumentos eficazes para fazer objeção ao discurso fascista.
Se o papel da Escola não for este, as instâncias responsáveis por sua condução ficarão relegadas ao trabalho burocrático – por exemplo entrando na ciranda infinita proposta pelas redes sociais com seu poder de pulverização e, como consequência última, condenar a psicanálise ao seu desaparecimento.
A “Rede Zadig”, enquanto extensão da Escola, criada por J-A. Miller, é o lugar onde esta reflexão pode se dar. O lugar onde a psicanálise pode e deve ir à política. Sua capilaridade no Outro social dependerá de nossas ações cuja efetividade pode fazer repercutir o sintoma da civilização. E, sem dúvida, há uma Escola antes e uma depois de Zadig. Talvez o significante que melhor aponte para esta fronteira, seja o “Campo Freudiano ano Zero”, onde, efetivamente, através de J-A. Miller, a psicanálise reivindica seu lugar na política.





[1] Bassols, M. Campo Freudiano, Año Cero, en la ELP. In: Lacan Quotidien, n.758.
[2] Miller, J.-A. Campo Freudiano, Ano Zero. In: Lacan Quotidien, n.718.


[3] Traverso, E. les nouveaux visages du fascisme. Patis: Textuel, 2107, p.13.

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