O que há de novo sobre o casamento?
Enquanto se comemora o quinto
aniversário da lei sobre o casamento para todos, aprovada em 23 de abril
de 2013, que abriu o direito ao casamento e à adoção para pessoas do mesmo
sexo, muitos relatórios da imprensa indicam que ela já está plenamente adotada
pelos franceses. Esse progresso mostra definitivamente que uma lei pode agir e
abrir amplamente os espíritos para uma nova concepção de sociedade. De acordo
com várias pesquisas recentes, os franceses consideram que não há diferença
entre casais homos e heteros. "60% apóiam a abertura da PMA[i]
para mulheres em casais homossexuais, assim como para mulheres solteiras. Ainda
mais surpreendente, 55% deles também são favoráveis à gestação por mães substitutas.
Uma revolução de mentalidades, no país das reticências éticas e do medo de
qualquer mercantilização da procriação"(1), relata L'Obs.
Os novos casais homossexuais, por
sua vez, estão satisfeitos e reconhecem que essa legalização lhes permitiu uma
melhor inserção no tecido social. Não há mais necessidade de se esconderem ou
de inventarem vidas paralelas, a lei dá uma permissão que mudou a relação de
cada um com a sua homossexualidade. No passado vivida como uma maldição ou um
sintoma que tinha que ser normalizado ou aceito, ela agora é sentida como uma
condição da sua sexualidade. Este impacto do reconhecimento através da
legalização definitivamente pôs fim a qualquer concepção da homossexualidade
como patologia ou transgressão.
Basear-se na leitura proporcionda pela tábua
da sexuação de Lacan (2), permite não confundir sexo e orientação sexual. No
entanto, cada um de nós é tomado pelas construções e ideais do seu tempo e
alguns psicanalistas nem sempre escaparam aos discursos estabelecidos. Isso
mostra que a tese de Lacan sobre a relação sexual que não existe (3) estava
muito à frente de seu tempo.
A lei sobre o casamento para todos
veio indicar que uma evolução estava em curso e cinco anos depois as várias
pesquisas confirmaram isso. Segundo Irene Théry, entrevistada pelo Le Monde,
esse avanço está enraizado em uma mudança na concepção do casamento.
Antigamente, "até os anos 1970, o
casamento impossibilitava a própria ideia de união entre pessoas do mesmo sexo,
já que seu significado primário era ‘a presunção de paternidade’: sua razão de
ser era dar um pai às crianças trazidas ao mundo pelas mulheres. Mas em 1972 a
lei estabeleceu que as crianças nascidas fora do casamento teriam os mesmos
direitos que os filhos ditos legítimos" (4). A partir de então, o casamento
se separa da questão da paternidade. Ele concerne essencialmente a um laço de
casal.
Renovação do casamento
O casamento homossexual, sem
dúvida, devolveu uma certa vitalidade à instituição matrimonial, muitas vezes
relegada a uma tradição ancestral pouco adaptada aos modos de vida atuais -
muitos casais preferem o PACS[ii]. Não esqueçamos que as estatísticas (5) sobre divórcio
mostram o fracasso mais ou menos esperado da vida de casal. Mesmo Jean
d'Ormesson reconheceu no final de sua vida que, vivendo cada vez mais, parece
incongruente ficar toda a vida com apenas uma mulher, mas, com seu humor de
dândi, ele fez ainda assim a observação de que "o casamento, são quarenta
anos ruins para atravessar e depois é excelente. A vida se torna deliciosa a
partir dos sessenta anos "(6).
Para a maioria, sem diferenciar
casais jovens e velhos, a separação está inscrita no ticket de entrada do
casamento, mas também se tornou tão banal que podemos ignorá-lo ou dizer que o
futuro sempre tem uma parte de surpresa, boa ou ruim. Vamos viver dia a dia.
Nossa época é marcada pela
artificialidade dos laços e pela natureza efêmera de qualquer escolha. Nenhuma
garantia, nenhuma verdade absoluta, nenhuma promessa eterna. A ordem simbólica
do casamento persevera, mas sem sua dimensão religiosa ou moral. Resta a festa,
já que o casamento continua sendo um momento em que as famílias e os amigos são
convidados em torno do casal que se une para celebrar alegremente sua transição
de solteiros para cônjuges, significante que não pode ser mais fora de moda,
mas que mantém seu valor legal. Ao celebrar sua união, os homossexuais sentem
que estão agora em pé de igualdade com os heteros e desfrutam plenamente deste
passo social, que lhes dá um status de direito e reconhecimento que os liberta
de séculos de retraimento, vergonha e exclusão.
Uma criança por quem, para
quem, de quem?
No entanto, apesar desses
avanços, a questão do filho permanece o desafio atual do direito de se tornarem
pais para os casais homossexuais. De fato, François Hollande, em declarações
recentes (7), lamenta não ter cumprido sua promessa de campanha de 2012 de
autorizar que mulheres lésbicas e solteiras recorressem à PMA, forçando-as
assim a ir para o exterior quando querem ter um filho.. Se ele recuou, foi por
causa da virulência do movimento Manif para todos que se opôs ao
casamento dos homossexuais e ao seu direito à adoção, e continua a militar
contra toda concepção de filhos para os casais homos.
No entanto, do ponto de vista
jurídico, os casais homossexuais têm os mesmos direitos que os casais
heterossexuais. Resta o real da biologia que, para os primeiros, bloqueia
qualquer possibilidade de gravidez sem a ajuda da ciência. Portanto, a decisão
de abrir o PMA a todas as mulheres, independentemente de sua orientação
sexual, é um ato político.
Hoje, enquanto se abrem esta
semana os Estados Gerais da Bioética, que darão origem a muitos
intercâmbios, conferências, debates e testemunhos sobre a questão da abertura
do PMA a mulheres lésbicas e solteiras, os defensores do Manif para todos
estão em pé de guerra, denunciando uma "PMA sem pai" (8).
Essa fórmula negativa é a
expressão de uma posição irredutível quanto à supremacia do casal
heterossexual, que, diga-se de passagem, não está próximo de desaparecer e
permanece o modelo de todas as futuras formas parentais.
Ela se funda em uma crença
inabalável na potência biológica da diferença entre os sexos. Ela se recusa a
situar o desafio que é a paternidade além das atribuições estabelecidas para
ambos os sexos. O padrão na forma de "um papai e uma mamãe para cada
criança" continua sendo seu plano de ataque, não vendo que nada impede que
essa estrutura funcione com outros determinantes lógicos.
Vamos admitir: ser pai ou mãe é
algo que não se aprende. Você nunca sabe que pai ou que mãe você será. Mesmo
quando as identificações mais certeiras são solidamente testadas, nada indica
seu caráter automático e verificável. É isso que a clínica psicanalítica nos
ensina. Ademais, para saber se seremos "o bom pai ou a boa mãe que
queremos ser", continuamos a imaginar que ter um filho nos dirá isso... A
isso chamamos "o desejo de ter filhos" e está além das leis.
Tradução
do Francês: Louise Lhullier
(1)
DEFFONTAINES C., LEPAGE, E.», sur enquête L’Obs-BVA réalisée en février 2018,
L’Obs, 14 de março de 2018, disponível aqui
(2) Cf.
LACAN, Jacques, O Seminário, Livro
20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, lição de 13 de março
de 1973.
(3 )Cf. LACAN,
Jacques, Radiofonia (1970). IN: ____________, Outros Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2003, p. 411.
(4) THÉRY,
Irene, propos recueillis par Pommiers E., Le Monde, 23 avril 2018,
disponível aqui
(5) 45%
des couples divorcent, article disponível aqui
(6)
D’ORMESSON, Jean, propos recueil Servat S., Gala, 5 décembre 1977,
disponível aqui
(7)
VANDEKERKHOVE, Ch., « Hollande regrette de ne pas avoir ouvert la PMA
aux femmes célibataires et lesbiennes », bdfmtv.com, 23 avril
2018 disponível aqui
(8) “La PMA sans père, une question
sociale”, 23 février 2018, www.lamanifpourtous
[i] Nota da tradutora: Procreation Médicalement Assistée /
Reprodução Medicamente Assistida
[ii] Nota da tradutora: Pacte Civil de Solidarité, equivalente
ao nosso contrato de união estável
Du signe
Diálogo sobre o filme «Signer» de Nurith Aviv
por Nurith Aviv e Éric Laurent
Éric Laurent — “Signer” [comunicar por sinais,
N.T.] nos faz descobrir um mundo no qual há poucas janelas dessa qualidade.
Essa janela contribui poderosamente para “ampliar nossa concepção de linguagens
humanas”, tal como Nurith Aviv formula a intenção de seu filme.
Desde o início estamos imersos in
medium res, no meio das coisas: com Emmanuelle Laborit, o título “Signer”
se encarna; ela nos confronta com isso, que é o fato de se expressar por sinais
através de um ato de tradução. A apresentação das diferentes maneiras de dizer
“azul” através do planeta-signos é evidentemente uma magnífica entrada desse
assunto na grande variedade de línguas de sinais. Ela me faz pensar no grande
livro de Michel Pastoureau, “Azul: história de uma cor”, que nos deu acesso à
variação histórica de toda a semântica do azul em nossa civilização. Ele nos
mostrou também que, durante toda a antiguidade, permanecemos sem ver o azul.
Graças à maneira como Emmanuelle Laborit se expressa por sinais, e àquela como
N. Aviv a filma, descobrimos como cada signo “azul” está ligado a uma
civilização. Tentamos adivinhar os liames que enodam esse sinal a um mundo
profundo [interior, N.T.]. O azul do mar e o do céu do Mediterrâneo não é o
azul dos japoneses e o dos chineses. A experiência do azul de cada cultura
torna-se sensível, palpável.
Gozo da voz
É. Laurent - A maneira singular
pela qual o olhar de N. Aviv se dirigiu acima é muito importante, pois ela nos
faz descobrir algo, um objeto comovente: a voz do surdo. O olhar conta tanto
quanto ele remete a um tratamento específico da voz. Esse filme revela um gozo
da voz, do qual temos apenas uma ideia muito vaga: a voz dos surdos quando eles
sinalizam – o que Gal ouviu atrás da porta quando seus avós e amigos
sinalizaram. Ver esse som é a revelação de um acontecimento de corpo inaudito.
É o fundamento pulsional da “cultura dos surdos”, da qual Gal fala de modo tão
convincente. Descobrir isso é, ao mesmo tempo, desconfortável e fascinante.
Nurith Aviv — Várias
coisas me ocorrem. Gal, quando fala com sua avó, diz que é do outro quarto que
ele ouviu a sua voz e é isso que faz, para ele, a cena original não ser um
olhar, mas uma voz.
Essa foi a minha decisão
original de não substituir a voz dos surdos pela voz do tradutor. Essa decisão
tinha claramente o objetivo de ouvir o som das vozes deles. Isso significava
que, enquanto eu rodava a cena, não sabia o que eles diziam, porque não havia
intérprete. O que foi mais trabalhado neste filme foi o som – passamos dez dias
no estúdio trabalhando nele.
É. Laurent — Esse
é o dispositivo que você nos fez compartilhar com a circulação dos iPads,
ficamos presos no campo da disjunção entre a imagem e o som. O iPad é utilizado
na família para apoiar a conversação por sinais e sua articulação aos sons.
Essa voz dos surdos é um objeto incrível.
N. Aviv — Gostaria de fazer uma
ópera com essas vozes.
É. Laurent — É um objeto
perturbador. Sentimos isso. É, ao mesmo tempo, estranho e fascinante.
N. Aviv — Com o tempo, nos
acostumamos.
É. Laurent — Podemos dizer que
nos acostumamos, podemos dizer também que nos aprofundamos na estranheza. À
medida que isso se torna mais familiar, torna-se também mais estranho. Está aí
o tempo todo. Essa sonorização particular torna isso muito presente.
Banho de olhares
É. Laurent — Extraordinárias
também são as conversas entre mães e filhas. Elas apresentam uma variedade de
características ao mesmo tempo: ternura, cumplicidade, envolvimento, atenção.
Uma mãe (surda de nascença) mostra à sua neta (que lá não está) o filme que ela
fez, cativada, quando sua filha tinha apenas 10 meses: na presença e sob o
olhar do pai (surdo), a criança aprende suas primeiras palavras, em sinais. Nós
nos movemos entre esses olhares. Estamos imersos nesse banho de olhares, nesse
modo de comunicar, que faz comunidade. Isso é ainda mais marcante que, na
primeira geração, a avó (a única criança surda de sua família) lamenta não ter
tido, nesse banho, a cumplicidade com sua própria mãe (não surda), pouco
propensa a aprender a língua de sinais, não plenamente com sua filha, por não
tê-la, ela mesma, praticado.
N. Aviv — É esse modo de fazer
comunidade que vai inventar a linguagem israelense de sinais, que não existia
no início.
É. Laurent — Há uma mistura de
níveis de linguagem, desde a mais íntima conversa “intergeracional”, até o
laboratório de línguas, presente em todos os seus filmes, o que nos leva ao
encontro de linguistas absolutamente impressionantes.
N. Aviv — Tenho que te dizer, a
primeira linguista que vemos no filme faleceu há um mês; estou triste por ela
não estar mais entre nós e feliz por ela estar aí, presente no meu filme.
É. Laurent — A heterogeneidade
dos níveis de língua se duplica sobre aquela dos lugares, em uma mistura não
menos surpreendente. O encontro entre a boemia berlinense e a aldeia de Kafr
Qasim particularmente.
N. Aviv — Sim, Daniel é alemão
e vive em Berlim com Meyad, nascido em Kafr Qasim. Sua mãe é polonesa, seu pai
é congolês; eles vieram para a Alemanha porque as escolas para surdos são
melhores ali do que na Polônia.
É. Laurent — Durante essas
viagens, esses encontros, inventa-se um grande uso de iPads, iPhones pelos seus
atores-personagens. Diálogos de sinais por Skype ou FaceTime povoam o filme de
telas abismais.
N. Aviv — Isso substitui as
janelas dos filmes anteriores. Mas estas são pequenas janelas...
É. Laurent — A invenção das
janelas em seus filmes é sempre surpreendente. É uma materialização do
enquadramento como tal, uma mostra da janela como algo fundamental.
Ensinemo-nos
É. Laurent — Acho que o seu
filme deveria ser exibido em todas as escolas de psicanálise e especialmente
àqueles que cuidam de adultos ou de crianças que têm dificuldade com a fala, em
casos de autismo e não somente..
N. Aviv — Os surdos não têm
problemas com a linguagem.
É. Laurent – Sim, mas existem
surdos autistas, do mesmo modo que se pode ser surdo e neurótico, surdo e
psicótico. Digamos que os surdos tenham os mesmos problemas com a linguagem que
os outros.
O uso original que eles fazem
da montagem das telas transformadas em instrumentos – de uma interação muito
mais sofisticada do que o selfie daqueles que, em nosso mundo, têm uma
relação padronizada com a linguagem – pode dar muitas ideias a terapeutas para
fazer contato com sujeitos que, eles mesmos, podem ter problemas com a
linguagem de ordem um pouco diferente.
N. Aviv – Ouvi dizer que alguns
autistas que lidaram com a língua de sinais foram capazes de dizer coisas que
não poderiam dizer de outra forma. Crianças ouvintes, para as quais a linguagem
é problemática, encontraram outra relação com a linguagem através da lalíngua
de sinais.
O verbo contra o sinal
É. Laurent — O conflito entre
a oralidade (obrigação dos surdos de aprenderem a falar) e a lalíngua
dos sinais (modalidade do gesto) tem estado muito distante. O recente livro de
um americano, Gerald Shea(1) (deficiente auditivo, não totalmente surdo) mostra,
ao longo da história, alternância entre os períodos em que os surdos eram
forçados a falar e aqueles em que lhes era permitido o livre acesso à língua
dos sinais. Aprendemos em seu livro que a história de Helen Keller, surda e
cega desde os 19 meses de idade (2018 é o quinquagésimo aniversário de sua
morte) foi deliberadamente enfeitada a ponto de resvalar pelo falso. Muitos de
seus escritos, como o conto “O Rei do Gelo”, que ela teria escrito aos onze
anos, foram, parece, de autoria de sua tutora, Anne Sullivan. Sua autobiografia
de 1903 é dedicada a Graham Bell “que ensinou os surdos a falar”. Ele mesmo
impulsionou Helen Keller para uma maratona de conferências para matar, no
nascedouro, a língua dos sinais nos Estados Unidos. Inventor do gramofone [do
telefone, N.T.] e eugenista, ele se opunha ao uso da língua dos sinais e queria
impedir que os surdos se reproduzissem entre si. Ele visava a sua
regulamentação para evitar a criação de isolats [uma espécie de gueto,
N.T.] de surdos. Ele, portanto, prejudicou muito a língua deles. Ela foi
reintroduzida nos Estados Unidos por um americano que retornava da França após
uma visita ao Instituto Saint-Jacques, local de transmissão da língua dos
surdos desde 1755 graças ao Abade de l’Epée, que, no século XVIII, havia
compreendido a sua importância e a sistematizou. Os americanos recuperaram
assim a relação com o sinal.
N. Aviv — A língua americana de
sinais tem, portanto, muita semelhança com a língua francesa de sinais, ao
passo que não tem nenhuma relação com a língua britânica de sinais. Quer dizer
que ela não passa pela fala, a língua de sinais não é uma tradução de línguas
faladas. Por razões históricas, assim, a França exportou a língua francesa de
sinais.
É. Laurent — Em seu filme, uma
pessoa surda atesta que se impedia a comunicação por sinais no pátio da escola
para continuar, além das horas de curso, o empenho para forçar a fala. Essa é a
versão soft da interdição contemporânea. No livro de G. Shea, aprendemos
que na Idade Média, para “abrir a palavra” dos surdos, colocavam brasas nas
bocas deles. Em nome do texto sagrado, enunciando que “no princípio era o
verbo”, era necessário que todos tivessem o verbo.
N. Aviv — Após o congresso de
Milão, em 1880, a língua dos sinais foi proibida nas escolas de toda a Europa.
A gramática do corpo
É. Laurent - No dossiê
de imprensa onde você apresenta o filme, você diz que Lacan se afastou
explicitamente do vínculo entre linguagem e vocalização, mas que ele teria dito
isso apenas uma vez, em 1963. No Seminário sobre a angústia, ele afirma:
“Linguagem não é vocalização.”(2)
N. Aviv — Ele diz: “Existem
outras maneiras além das vocais para receber a linguagem. Linguagem não é
vocalização. Vejam os surdos”.(2)
É. Laurent — Eu acrescentaria
que Lacan, desde o início de seu ensino, em 1954, em seu primeiro Seminário,
faz referência à linguagem dos sinais. Ele faz referência a um tratado de Santo
Agostinho, De Magistro, a um diálogo com seu filho de 17 anos, já um pequeno
gênio, infelizmente falecido aos 19 anos. Esse tratado visa o que é linguagem.
Santo Agostinho alí se refere à
língua dos sinais. R.P. Beirnaert, que expôs o texto no Seminário de Lacan, diz
o seguinte: "Agostinho pergunta ao seu discípulo se examinou bem os surdos
que comunicam por gestos com os congêneres. “E mostra que, nessa linguagem, não
são somente as coisas visíveis que são mostradas, mas também os sons, os
sabores etc”.(3) Lacan assinala: “Exemplos de dois signos que não são
verbo – gestus e littera. Aqui, Santo Agostinho se mostra mais saudável
que nossos contemporâneos; alguns dos quais chegam a considerar que o gesto não
é de ordem simbólica, mas se situa, por exemplo, no nível de uma resposta
animal. O gesto, portanto, faria objeção à nossa tese de que a análise se dá
inteiramente pela fala. E os gestos do sujeito? Eles dizem. Ora, um gesto
humano está do lado da linguagem e não da manifestação motora. Isso é
evidente”.(4)
Lacan retoma o exemplo dos
surdos que atestam que existem categorias de signos que não passam pela fala,
em seu Seminário III sobre as psicoses: “É ainda mais simples se pensarmos no
surdo-mudo, que é suscetível de receber um discurso por sinais visuais
transmitidos por meio dos dedos, segundo o alfabeto surdo-mudo. Se o surdo-mudo
ficar fascinado pelas lindas mãos de seu interlocutor, ele não registrará o
discurso veiculado por essas mãos. Eu diria mais – o que ele registra, ou seja,
a sucessão dos sinais, sua oposição sem a qual não há sucessão, será que se
pode dizer que, propriamente falando, ele o vê?”(5) Assim como no primeiro
Seminário, graças a Santo Agostinho, ele havia cortado o elo entre o sensorium
da voz e a questão da troca de sinais, ele o corta aqui com a visão, ele
finalmente só considera que “isso se vê”. Isso se percebe além de qualquer sensorium.
Poder-se-ia dizer que é o corpo em toda a sua superfície que é mobilizado. A
linguagem, na sua intenção de significação, causa aí impacto. Assim como a
ênfase colocada no filme sobre o jogo do corpo inteiro, da “gramática do
corpo”(6), como diz a linguista Wendy Sandler, é muito importante.
Do sinal desconectado do
sensorium à instância da letra
Se Lacan acentua a desconexão
do sensorium e do signo em seu Seminário sobre as psicoses, é porque
esse ponto é crucial para a sua doutrina da alucinação. Quando ele desconecta a
voz ou o sinal do sensorium, é para separar a “instância da letra” do phonè
[fone: som do fonema, N.T.] e da visão. A voz afônica da alucinação é uma
voz, mas não é um phonè [fone]. É uma voz mais próxima do gesto, ou da
escrita, uma escrita que ocorre no corpo. Entendemos então o fundamento da
querelazinha com Derrida para saber quem primeiro tirou o gramme [letra,
N.T.] do phonè. Assinalemos a importância desses lembretes nos primeiros
seminários sobre o papel da línguagem dos sinais.
“Esse tempo, no entanto,
deveria parecer legítimo, a qualquer exame não prevenido da alucinação verbal,
por não ser ela redutível, como veremos, nem a um sensorium particular,
nem, sobretudo, a um percipiens, como aquele que lhe daria sua unidade.
De fato, é um erro tomá-la por
auditiva por natureza, quando é concebível, em última instância, que não o seja
em nenhum grau (surdo-mudo, por exemplo, ou em um registro não auditivo do
soletrar alucinatório), mas sobretudo considerando-se que o ato de ouvir não é
o mesmo, conforme vise a coerência da cadeia verbal, isto é, a sua
sobredeterminação, a cada instante, pelo a posteriori de sua sequência, bem
como à suspensão de seu valor, a cada instante, no advento de um sentido sempre
pronto a uma remissão, ou conforme se acomode na fala à modulação sonora, a uma
dada finalidade de análise acústica: tonal ou fonética, ou até mesmo de
potência musical”.(7)
N. Aviv — Eles são surdos, mas
não são mudos. Eles são apenas Surdos. Com um grande S. Eles reivindicam isso –
como alguns afirmam serem Judeus com um grande J.
Tradução: Antonia Claudete
Amaral Livramento Prado
1: Shea G., The language of light : a History of silent voices, Yale
University Press, 2017.
2: Lacan J., O Seminário, livro
10, A angústia, (1962-1963), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2005, p. 299.
3: Lacan J., O Seminário, livro
1, Os Escritos técnicos de Freud (1953-1954), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed.,
1986, p. 287.
4 : Ibid., p. 290.
5: Lacan J., O Seminário, livro
3, As psicoses (1955-1956), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1985, p. 158.
6: Cf.
Grammar of the Body (GRAMBY) Interdisciplinary Research Project mené par la
linguiste américaineisraélienne Wendy Sandler (Université de Haifa) et financé
par le Conseil européen de la recherche (Union Européenne).
7: Lacan J., “De uma questão preliminar a todo tratamento
possível da psicose” (1958), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1998, p. 538-39.
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