19 de janeiro de 2012

LACAN COTIDIANO Nº 119 - PORTUGU ÊS

Segunda-feira 19 dezembro 2011 00h00 [GMT+ 1]

NÚMERO 119

Eu não teria perdido um Seminário por nada no mundo— PHILIPPE SOLLERS

Nós ganharemos porque não temos outra escolha — AGNÈS AFLALO

www.lacanquotidien.fr

▪ CRÔNICA ▪

Baltimore, 5 :00 da manhã

New York, New York,

Galáxia dos Uns sozinhos

Pierre-Gilles Guéguen

▪ O desvio de um detalhe ▪

Anaëlle Lebovits-Quenehen

André Wilms : impetuoso no quadro



▪ CRÔNICA ▪

Pierre Gilles Gueguen II

Baltimore, 5 :00hs da manhã

New York, New York,

Galáxia dos Uns sozinhos

Pierre-Gilles Guéguen


Shame é um filme do século XXI. O dos Uns sozinhos. Mas Steve Mc Queen, seu diretor, não está sozinho, ele é parte de uma tradição cinematográfica, como evidenciado pela retomada da canção da comédia musical New York New York filmado em 1977 por Martin Scorcese. Lisa Minelli e Robert de Niro mostravam neste filme uma face sombria do sonho americano: tornar-se « King of the hill, top of the cream » ( como na estrofe da música New York, New York de John Kander). A busca pelo sucesso, significante mestre da Broadway, impunha a ruptura dos casais e das suas relações afetivas. A ação se situava em meados do século XX em New York. Os personagens eram devastados pela neurose, a ausência (real) da relação sexual se encontrava intensificada pelo sacrifício (imaginário) do amor para ser (simbólico) «o único » ou « a única ». Uma estrela no céu do sonho, brilhando pela eternidade, mas só na sua galáxia, como se estivesse morta, isolada do olhar dos humanos que ela faz sonhar.

O diretor inglês Steve McQueen faz explicitamente referência a esta comédia musical. Uma das cenas mais comoventes de Shame é a retomada da conhecida New York New York, cantada como blues melancólico, pela heroina Sissy (Carey Mulligan).

Brandon (Michael Fassbender) é um homem de trinta anos metrosexual, que divide a sua vida entre um trabalho muito bem remunerado e, uma procura compulsiva por sexo comprado, quer seja, por meio da pornografia em seu computador, quer pelo recurso às prostitutas. O dinheiro é discretamente um dos motores de sua vida solitária, mas, no entanto, muito socializada pelo universo do trabalho. Este é um modo de gozar compartilhado que permite as identificações aos semelhantes: amizades masculinas homoeróticas, no qual arrastar (as mulheres) é o cimento.

Não podemos deixar de pensar em um ex-futuro candidato à presidência da República francesa.

O dinheiro, como tela lhe permite manter distância de qualquer envolvimento emocional na sexualidade. Um jovem homem recentemente ouvido em uma apresentação de pacientes dizia assim « eu posso ter relações sexuais, mas não posso ter intimidade ».

Brandon não tem intimidade. O diretor traduz isto, pelo viés, ao mostrar a nudez dos corpos incluido no ato sexual, sem o véu do pudor que o método narrativo permite geralmente ao roteiro cinematográfico. Daí, também, certas cenas cuja insistência roça o penoso. O véu não está, contudo, totalmente ausente, mesmo que apenas, na beleza formal dos angulos fotográficos, como na trilha sonora muito sofisticada que serve de contraponto a crueza das imagens. O que nos recorda discretamente o distanciamento brechtiano.

Brandon leva uma vida muito vazia (ele têm apenas poucos livros de design em sua livraria), porém ritualizada e perfeitamente de acordo com seu meio social. Até que sua irmã Sissy irrompe em sua vida.

Cantora de Jazz, em busca de improváveis cachês, ela vive à deriva entre a costa Ocidental e a costa Leste, entre um homem e um outro, sempre rejeitado, sempre em busca de um amor ideal. Ela se precipita em seu sonho amoroso, como uma cotovia deslumbrada pelo sol tentando se impôr como o objeto que faltaria ao outro, animada de uma fúria masoquista que angustia o parceiro. Inevitavelmente ela se faz ejetar no drama e na dor. Ela está quase sem folêgo quando chega à casa de seu irmão, cuja rotina perturba. Ele que se saia pelo ritual (o que significa que se quis ver nisso um caso de « adicção sexual », ora o filme demonstra o contrário, o priapismo do personagem como uma solução complexa e frágil que faz parte de uma psicose ordinária). Sissy, não encontra outro limite para a sua deriva a não ser o suicídio.

Ela tenta em um último esforço suscitar no seu irmão este limite que lhe faz falta. Mas ela o angustia ao ponto em que ele mesmo, após uma viagem ao universo obscuro da prostituição, da droga, da homossexualidade da escória social, nos limites da perversão, está em perigo. De volta para casa ele encontrará Sissy morta ensanguentada. Ele não tem outro recurso a não ser voltar aos seus comportamentos de « adicto ».

Dois momentos do filme são particularmente comoventes: um onde Brandon tenta uma aventura com uma colega de trabalho que abre a perspectiva de um compromisso afetivo. Seu corpo o trai no momento crucial, quando ele aparece impotente. Ele está desanimado e deve verificar imediatamente com uma « garota de programa » que seu pênis ainda está vivo.

O outro momento é uma simples imitação da Sissy que soa como um sinal de alerta: « we are not bad people, we were just born in the wrong place »( “não somos pessoas más, apenas nascemos no lugar errado”). Nós não éramos maus, mas, nascemos num mau lugar. Para estes dois irmãos o nome-do-pai não funcionou, o grampo que há em seu lugar é tão frágil que para a mulher não existirá, pois ela estará mais exposta à sua relação ao S (A/). O homem, pelo fato de sua prática, que se sustenta sobre um traço perverso acentuado, ele consegue se apoiar melhor às identificações aos semelhantes. Um grande filme que renova o tema da multidão solitária. (David Riesman 1950). New York ai brilha como um diamante negro.

Quem são estes humanos, nossos irmãos e irmãs, portadores de ideais sociais, « role-models » (modelos a imitar) e, no entanto, tão frágeis? O financista corrupto Bernard Madow, Jon Corzine político, ex-senador de New Jersey, responsável por uma das maiores falências de Wall Street ou ainda Jerry Sandusky, o ex-treinador irrepreensível das equipes de futebol da Penn State University, hoje acusado de pedofilia, carregam em vão esta interrogação sobre a cena das mídias americanas, que a retomam nos termos do discurso do mestre.

Não falamos do filme, em termos de Graça como faz a crítica do jornal «Le Monde » (“Shame": Steve McQueen trouve la grâce derrière l'abjection”) (06/12/2011) mas vemos ai, antes os vestígios do fato de que o Outro não existe.

Steve Mc Queen lança um olhar lúcido sobre o universo do “sucesso” que New York simboliza. Ele mostra que a identificação pelo modo de gozar não tem rumo, quando certas contingências se apresentam. Dá a entender que se passar do pai não é fácil e, portanto, que apenas o discurso da psicanálise permite prescindir do pai na condição de servir-se dele. Ou seja, a de encontrar pela identificação ao sinthoma uma fixação menos arriscada dos registros imaginário, real e simbólico.

Como traduzir então o título do filme ? Trata-se de uma vergonha experimentada pelos personagens? O inglês distingue dois usos do termo: « Shame on you » você se envergonhe, e « it’s a shame » é uma vergonha, que dano, que desperdício ! Da minha parte eu escolheria antes a segunda acepção.






▪ O desvio de um detalhe ▪


Anaëlle Lebovits-Quenehen

André Wilms : impetuoso no quadro



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Mesmo se recusamos todo pathos, o cinema de Kaurismäki é voluntariamente desesperado. No entanto, em sua filmografia, Le Havre é uma exceção, pois este filme é duplamente feliz. Mais do que uma história plausível, este filme é um conto que põe em cena um poeta (personagem que encontramos há 20 anos no filme, La vie de Bohème) e tornou-se engraxate – um fracasso em suma. Este fracassado e seus vizinhos do Havre (Alta-Normandia) embarcam juntos em uma empreitada própria, a revelar sua dignidade e, uma ética a toda prova. Kaurismäki descreve-nos, portanto, uma história de hoje - aquela de uma vizinhança, que tomando de fato a causa de uma criança clandestina e procurada pela polícia, a ajudam a se juntar à sua mãe em Londres – embora isso nos projete à década de 50, cujas decorações dos interiores são emprestadas. Eis, o que faz o nervo deste conto de sucesso, precisamente, porque ele não cai na armadilha dos bons sentimentos, embora ele os suscite. Le Havre também foi premiado com o Prêmio Louis-Delluc como o melhor filme francês do ano de 2011, na última sexta-feira: com a interpretação de André Wilms, a quem Aki Kaurismäki confiou o papel principal, o que não foi, sem dúvidas, por nada.

Se este andarilho de fronteiras, raro sobre as telas do cinema – mas como esquecer o pai, Le Quesnoy que Na vida é um longo rio tranquilo?–, representa com ardor, com vivacidade, em companhia dos diretores, os mais surpreendentes. Era necessário, assim vê-lo em Deus como paciente, encarnar a língua de Lautréamont, diante de Anne-Lise Heimburger, em uma cena com Matthias Langhoff. Era necessário vê-lo cozinhar no Amante inglês de Duras, sem os utensílios, nem uniforme… Na cena com André Wilms, o texto é incorporado de fato, e sua voz é o agente desta encarnação.

Falando dos diretores de teatro ou dos produtores com os quais trabalhou, ele encontra a pequena piada reveladora que pinça a singularidade do personagem num verdadeiro pequeno detalhe. Assim quando ele evoca Klaus Mickaël Grüber com o qual encenou por três vezes: « Ele sabia falar com as pessoas sem dizer grande coisa: « Não venha soluçar sobre os meus joelhos, chore por dentro. » Com ele era um tratamento de perda de peso. » Ou mesmo quando narra seu primeiro encontro com Kaurismäki : « Desembarquei às 2 horas da manhã no bar do hotel. Logo que me viu disse: Você tem os olhos tristes e um nariz grande, como eu mesmo, o que te permite fumar sob o chuveiro. Isto é bom, eu te contrato » ». Idem, também, quando fala de si, sem pretenção, nem falsa modéstia, às vezes com auto-depreciação, própria àqueles que sabem de sua reputação sólida o suficiente, para arranhá-la sem prejuizo.

André Wilms é também dividido. As suas entrevistas portam esta marca [cf. entre autras Télérama desta semana no qual é manchete no Le Diable probablement n°6]. Como argumenta, não tendo feito escola de arte dramática, sente-se às vezes ilegítimo, mas o fato de ter encenado com os maiores diretores, leva-o a saber também, arrogante, às vezes. Então pode ao mesmo tempo, ter adoração por Buster Keaton no papel em que « dança e metafísica » se conjugam e, apreciar a intuição de Robert Mitchum, segundo o qual, a comédia é feita pelos poodles (dançarinos das festas nos grandes salões das aristocracia européia-século XVI). Ele considera ao mesmo tempo, finalmente que a droga é mais apta do que a comédia, pois nos leva a provar um sentimento de toda-potência, e que representar para ele é como o cigarro ( uma droga suave, em suma) : a cada dia que deus faz, ele se diz, «amanhã, eu paro », no entanto, a cada dia que deus faz, o diabo do Wilms ainda está lá. O ator considera ainda, firmemente, que a arte não é a cultura, e recorda a esse respeito seu gosto pelo teatro que faz escândalo, divide, cria cisões, linhas de fraturas, inimigos, ali onde a cultura tem por efeito reunir. Mais lamenta, ao mesmo tempo, que não seja ele que faça o apelo sussurrando ao ouvido dos consumidores de todos os países: « Nespresso, what else ? »( Nespresso, o que mais?)

Porque André Wilms faz parte dos francs-tireurs (pessoas que agem independentemente) – ele se orgulha, aliás, de ler Lacan ao qual reconhece como um gênio não convencional, uma força à toda prova, capaz também de fazer escândalo, de dividir, de compartilhar, de criar cisões, linhas de fratura – podemos apenas nos regozijar com o fato de que sua interpretação passe por um tempo, ao menos, sob o domínio da cultura, com o sucesso que conhecerá Le Havre, filme onde o Sena escoa menos tranquilamente do que parece. Vá ver com os seus olhos: o filme será lançado na próxima quarta-feira nas telas e Wilms estará de 14 até 19 fevereiro no Bouffes du Nord no Max Black d’Heiner Goebbels.


Clin d'oeil surMax Black Musique é dirigido por Heiner Goebbels

o covil de um alquimista do pensamento, o antro de « Max Black » é uma confusão indescritível que vai do gabinete de Cagliostro ao laboratório de pesquisas… uma plataforma acidentada à meio-caminho entre o quarto bagunçado de uma criança e uma gaiola de Faraday. Um magnífico terreno para as encenações e as aventuras de um comediante como André Wilms que encarna o filósofo « Max Black » em uma sucessão lúdica de rituais surrealistas postos na música pelo compositor e diretor alemão H. Goebbels. Depois da peça « Où bien le débarquement désastreux » que H. Goebbels extraiu de Francis Ponge e Heiner Müller, eis « Max Black » em sua sequência improvável, apresentando-se com um desempenho que nos reenvia aos escritos de « Max Black », mas também a uma colagem das citações de Paul Valéry, Georg Christoph Lichtenberg e Ludwig Wittgenstein. Dedicado à ciência e ao saber experimental através dos trabalhos práticos que nos valem algumas supresas pirotécnicas, o espetáculo diverte-se à maneira de uma novela para o teatro ao levar de volta à sela de André Wilms pesquisador solitário de um graal metafísico. >>Todas as informações.



Lacan Cotidiano retoma suas atividades na terça-feira, 3 janeiro 2012…

Œuvres de Pablo Reinoso. Le Cabinet du Dr. Lacan. 1998. En savoir plus.

Esperando o retorno desse significante, o comitê de direção e a equipe de redação desejam a todos boas festas de final de ano.

Caixa de texto: Le mur de coussins de   Respirantes Seguramente, se ocorrer algum acontecimento lacaniano neste período, nós nos reservamos à possibilidade de lançar um número especial…

E para efetivamente preparar o retorno, convidamos os autores, a nos encaminhar seu texto, orientados por suas inspirações.

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Ler, estabelecer, corrigir?

Vivo, rápido, aberto, Lacan Cotidiano traça um suco inédito para a psicanálise de orientação lacaniana.

Paralelamente, a publicação de livros prossegue, amplia-se. Chamamos os voluntários para participar à edição das próximas obras publicadas pela Navarin/Campo freudiano.
Começando ou com uma experiência, disponível pontualmente, ou mais regularmente para ler, estabelecer,corrigir… se você desejar implicar-se nesta aventura,não hesite em nos escrever!
Pascale Fari p.fari@bbox.fr e Ève Miller-Rose eve.navarin@gmail.com

Obras de Pablo Reinoso. Le Cabinet du Dr. Lacan. 1998. En savoir plus.




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As propostas de textos para a publicação em Lacan Cotidiano dirijam-se por email ou diretamente sobre o site lacanquotidien.fr clicando sobre "proponho um artigo",

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Tradução: Zelma Abdala Galesi

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