15 de agosto de 2017

Lacan Cotidiano. Sobre o populismo, por Cristiane Alberti


                                                              
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EDITORIAL
Christiane Alberti
«Só existe isso: o laço social»

A Escola da Causa Freudiana envolveu-se decididamente em um combate que visou fazer barreira à eleição de Marine Le Pen, por ocasião da recente eleição presidencial. Tratava-se, para os psicanalistas, de intervir no debate público para evocar as raízes históricas da Frente Nacional e seus vínculos atuais com o fascismo e os neonazistas.

 Sem entrar na discussão dos programas e da política partidária, foi um ponto de vista ético que nos levou a extrair consequências, particularmente sobre a abstenção e o voto em branco. Foi, digamos, um princípio de realismo superior que nos guiou em cada etapa desta campanha. Ele consiste em se vincular às condições concretas, práticas de realização da coisa esperada, não obstante todos os obstáculos que se apresentaram [cf. a moral objetiva em Hegel (1)].

 Nossa responsabilidade estava envolvida, uma vez que se tratava não apenas de aderir à opinião esclarecida, mas também, em parte, de trabalhar para constituí-la. E foi exatamente a partir de nossa condição de psicanalistas, que nos leva a enfrentar o recalque, que tomamos posição publicamente: enfrentar a inclinação natural atual que repousa sobre o esquecimento do passado mais sombrio. 

O populismo
A questão do populismo foi central. Nós havíamos nos deparado com o perigo que ele representa sob suas diferentes formas, e mensurado a que ponto ele havia penetrado nos espíritos: fosse a tendência oriunda da corrente propriamente anti luzes, ou ainda aquela do protesto romântico tão caro à França.

 Em seu trabalho sobre a ameaça populista, Jan-Werner Müller (2) nos propõe voltar a seu próprio fundamento: o confisco ilegítimo do povo, mais essencial do que a crítica das elites. Seus líderes afirmam sempre serem os únicos representantes do «verdadeiro povo» («das gentes verdadeiras»), ou da maioria silenciosa. Este povo está de fato desrealizado e humilhado. O populismo pratica a humilhação permanente de um povo a ser salvo. É o resto, como aquilo que Lacan designava o que foi o desastre moral dos anos sombrios: «A humilhação de nosso tempo pelos inimigos do gênero humano (3)».

 Sobretudo: o monopólio moral que os populistas reivindicam engendra uma dupla exclusão, perigosa para a democracia. Primeiramente, todos os outros partidos são ilegítimos e corrompidos. Em segundo lugar, é da própria natureza do populismo praticar a exclusão de uma parte do povo, definitivamente sempre suspeita de não pertencer à humanidade.

 Dito de outra maneira, a guerra civil (o maior de todos os males, segundo Pascal) está no horizonte de todo populismo que exacerba a pulsão de morte sob as categorias da pulsão segregativa. 

O Estado de Direito
É esta perspectiva que especialmente nos conduziu a opor ao populismo a referência ao Estado de Direito. É do direito que o povo extrai sua definição, e sua norma reside na forma da lei. O Estado não é, aqui, assimilável à potência (à força, à violência), mas ao direito e à lei – obras humanas incessantemente em movimento, compensação à vox populi –, se quisermos considerar como Blandine Kriegel (4), para quem o Estado moderno não procede do império romano germânico, mas da renovação republicana dos reinados da Renascença. Ele é uma criação permanente que não pertence a ninguém, mas a todos, uma instituição que não existe além, mas por e para os indivíduos

 Em todo caso, é útil se interrogar sobre o Estado de Direito hoje, em um momento em que se vê ressurgirem as recolocações em causa da teoria da representação e do parlamentarismo, bem como dos projetos pouco confiáveis dos regimes constitucionais alternativos. De resto, esta crítica é antiga e sempre acompanhou a teoria do Estado moderno. 

O laço entre os que falam
Não se tratava somente de defender o Estado de Direito porque ele condiciona a prática da psicanálise. Esta referência ao político, ao discurso do mestre que se instaura da emergência do Estado, é de um outro âmbito. Ela parte também do discurso analítico, caso queiramos fazer da psicanálise o campo de um exercício mais amplo do que aquele do tratamento. Eu gostaria de dizer em quê.

 É a partir da experiência da análise que se pode apostar nos recursos do discurso, que não é nada mais do que «o laço entre os que falam». A política é, no fundo, o laço social. E é nossa arma frente à pulsão de morte: «Afinal de contas, só existe isso, o laço social» (5), sublinha Lacan, ou seja, o que faz os corpos manterem-se juntos, enquanto, ao contrário, seu gozo gera a segregação.

 Esta consideração do laço social se faz a partir do discurso analítico, ou seja, às avessas do político, às avessas de um exercício de dominação. A experiência de uma análise leva a se distanciar das identificações de massa (sempre segregativas) para se considerar, antes, as múltiplas escolhas do desejo ou do gozo. Sempre de-segregativa, ela leva a apostar que o coletivo pode conquistar um lugar nesta pluralidade: o Um da inclusão do múltiplo, e não o Um da exclusão do múltiplo. Neste sentido, a psicanálise quer o político.

 E é precisamente porque, no tratamento, acaba-se por encontrar o ponto em que o Outro não existe, o ponto em que os recursos do simbólico empalidecem, que, uma vez atingido este ponto, tem-se um retorno ao laço social dentro da relação com o Outro, que se efetua no sentido em que se coloca a responsabilidade do Outro a ser inventado. Salvo se for para ser resolvido pelo mais estéril cinismo. Uma análise não faz ir do pai (père) ao pior (pire), a essa espécie de niilismo presente no populismo.


Isso dá aos psicanalistas uma responsabilidade nova em um contexto de diluição do laço social, de todas as bases fundadoras do coletivo. O que é «imbecil» no populismo são precisamente os significantes-mestres que não fazem laço, as injunções, cortes do saber. E o vislumbre do saber é crucial em um contexto em que nossos políticos se deixam facilmente fascinar pelo S1, especialmente o da avaliação e o do cientificismo.

 É em uma prática política a ser inventada passo a passo que a psicanálise torna-se apta a contribuir de maneira útil para o exercício de um discurso do mestre que seria «um pouco menos idiota(6)», como Lacan parece denominar, de própria voz, em sua Conferência em Milão, 1972. Dar todo o seu alcance a este aforisma de Lacan, fazer dele uma perspectiva é, portanto, algo a ser seriamente considerado. 

Este texto foi pronunciado no domingo, 2 de julho, por ocasião do Fórum organizado no âmbito do 4o Congresso Europeu de Psicanálise, PIPOL 8. O Fórum tinha como título:La montée du populisme en Europe: quelle réponse des politiques, des intellectuels et des psychanalystes?/A ascensão do populismo na Europa: qual a resposta dos políticos, dos intelectuais e dos psicanalistas?

1: «O Estado é a realidade em ato da ideia moral objetiva» (Hegel, Princípios da Filosofia do Direito, 1821).
2: Müller J.-W., Qu'est-ce-que le populisme? Définir enfin la menace, Premier Parallèle, 2016.
3: Lacan, J, Écrits, Paris, Seuil, 1966, p. 150.
4: Cf. Kriegel B., État de droit ou Empire ?, Bayard, 2002.
5: Lacan J., Le Séminaire Livre XX, Encore, Paris, Seuil, 1975, p. 51.
6: Lacan J., «Du discours psychanalytique», Lacan in Italia, En Italie Lacan, 1953-1978, La Salamandra, 1978, p. 47.


Tradução: Adriano Messias
Revisão: Maria do Carmo Dias Batista




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