9 de novembro de 2011

LACAN COTIDIANO Nº 21 - PORTUGUÊS

Sexta-Feira, 9 de setembro, 14h15 [GMT+1]

NÚMERO 21

LACAN COTIDIANO

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Eu não perderia um seminário por nada nesse mundo - PHILIPPE SOLLERS

Ganharemos porque não temos escolha - AGNÈS AFLALO

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O Gongora da psicanálise, a seu serviço

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Jacques Lacan

13 de abril de 1901 - 9 de setembro de 1981

BIG BANG! por Eric Laurent

Aí está! Sabemos desde esta manhã que soaram as três batidas da “Volta das férias lacaniana”. Que comece a festa!

Inicialmente, foi Lacan Cotidiano, com o retorno do que havia sido recalcado nas revistas de cultura e nos programas de televisão e rádio da dita “volta...”. Aquele cujo trabalho era pilhado (e não apagado) retomava a palavra. E como!

Houve, a seguir, a noite desta segunda, em que o Encontro com Lacan de Gerard Miller apresentava ao grande público o “sujeito espantoso” que era Lacan, enfrentando calmamente os estereótipos difamatórios sobre sua pessoa e sua prática.

Terça à noite, houve um evento menos calmo em que - diante de 400 pessoas reunidas em Montparnasse e lado a lado com um grande escritor encarnando literatura-lituraterra, que havia dito em termos inesquecíveis sua ligação com a pessoa e a palavra de Lacan, Sollers - J.-A. Miller explicitou sua correspondência com a direção do Seuil, os “maus modos” dos quais tinha sido repetidamente objeto e, enfim, sua decisão, naquela própria manhã, de romper com esta editora em que Lacan havia publicado seus Escritos em 1966. Ele contou os últimos desdobramentos da tarde, de seu encontro com Hervé de La Martinière, sua escolha por este grupo para nele conceber e desenvolver uma nova política editorial lacaniana.

Finalmente, ontem, Le Point: Judith Miller deixa sua reserva e “declara guerra” a Elisabeth Roudinesco por conta do intolerável final do opúsculo sobre Lacan, acusando-a de ter traído as últimas vontades de seu pai. “A historiadora” (que se ria), cedo se verá historizada. Um dia é da caça outro pode ser do caçador.

Eis-nos em uma encruzilhada da história da psicanálise na França.

Nada de fim da história para os lacanianos. Novas separações, declarações, esclarecimentos estão à vista, antes que se encontre uma unidade de nível superior. Nem pensar em extinguir-se por um vasto consenso, com o que alguns puderam sonhar na noite organizada pela École Normale Supérieure sexta. Lerei o texto do seminário sobre Hamlet, de que me incumbiu Catherine Clément, mais isso será feito em um contexto no qual se dá nome aos bois e não na noite em que todos os gatos são pardos.

A história da psicanálise lacaniana na França não é a história das gerações que existem sem terem sido criadas [incréées], que se sucederam em coortes bem comportadas. É a história de uma hiância irredutível. A lacuna de Lacan impediu a história de girar em círculos e deixou entrevar que “a vida é uma história de som e fúria, contada por um idiota e que nada significa”. Macbeth é uma boa via para o sentimento joyceano de Lacan diante da história “pesadelo do qual não se desperta”, paródia da eternidade.

Esta reabertura da hiância na história é uma bela maneira de registrar o aniversário da morte de Lacan que se produziu no ano seguinte à dissolução feita por ele de sua Escola, a Escola Freudiana de Paris (EFP). Este ato assinalava sua recusa obstinada em deixar perdurar a instituição como mentira, além do mal-entendido que a havia levado a seu impasse final. É o contrário do “Morro, mas a pátria não”. Não é, como alguns lhe recriminaram, “depois de mim, o dilúvio”. Ele quis que ela fosse substituída por uma Escola na qual os estatutos foram pensados segundo suas indicações e segundo as lições da dissolução.

O contexto da morte de Lacan é igualmente o da fundação da École de la Cause Freudienne (ECF) que ele adotou antes de morrer.

Para dar a partida na ECF foram necessárias múltiplas escansões. No início era simples, havia os “a favor” e os “contra” ao ato de dissolução de Lacan. Nos “contra”, estava Mme Aubry, com Françoise Dolto. A seguir, bem rapidamente chegamos ao nevoeiro da guerra, uma sucessão ininterrupta de cartas em que era difícil reencontrar, entre posições estanques e as singularidades de cada um, a bela simplicidade do início. Não se podia perder o fio entre aqueles cujo espírito de conciliação estampado mal escondia a oposição profunda ao processo em curso e aqueles que se estampavam de início como líderes do movimento pró-dissolução para, a seguir, traí-lo brutalmente com um gozo de uma rara obscenidade.

Lacan, por sua vez, se orientava perfeitamente, ele e o seu grupo que sustentava a dissolução, reunidos na casa dele naquela noite de dezembro de 1980, logo depois da traição de M*. Após termos ouvido tudo, ele concluiu: “isso tudo é uma bela porcaria”. Essa porcaria foi o terreno da transformação das listas daqueles que se tinham declarado por ele, “os Mil”, assim chamados pelo seu número e pela lembrança garibaldiana, em uma escola de 300 membros no final de um processo que caminhou em estranha atmosfera. As mais belas flores nascem do estrume. Foi um tempo que não puderam conhecer aqueles que hoje têm menos de 30 anos, em que um amigo de longa data poderia, de um dia ao outro sem lhe dizer uma palavra, virar-lhe as costas e ser encontrado em uma lista de pessoas que injuriavam você com fervor ou, então ao contrário, você recebia chamadas que perguntavam em um tom fofo se você estava bem. Temia-se o suicídio dada a pressão formidável que se exercia, etc.

Seja como for, a adoção da ECF por Lacan ao final de seu último Seminário e após a viagem à Caracas em 1980 foi entendida como uma chamada em direção ao futuro. Ela ecoou “para além da dissolução da Escola que ele tinha fundado, para além de sua morte ocorrida em 9 de setembro de 1981, ecoou além de Paris, onde ele viveu e trabalhou”. Assim se exprimiu em 1° de fevereiro de 1992 o texto do Pacto de Paris redigido no momento em que a Escola da Causa Freudiana, a Escola do Campo Freudiano de Caracas, a Escola Europeia de Psicanálise do Campo Freudiano, e a Escola da Orientação Lacaniana do Campo Freudiano, decidiram convergir na Associação Mundial de Psicanálise que acabara de ser fundada por Jacques-Alain Miller. Desde então as Escolas se transformaram e outras foram criadas, a ECF foi reconhecida como de utilidade pública pelo decreto de 5 de maio de 2006 e a AMP obteve status de “consultor especial” da parte das Nações Unidas 31 de julho de 2011.

Para especificar a orientação comum conservada através das diferentes Escolas a Associação Mundial de Psicanálise adotou em junho de 2000 a Declaração da Escola Una.

Ela enfatiza que a Escola nascida da dissolução não é um agrupamento de profissionais que partilham um saber comum. É formada por membros que entram em acordo com relação ao reconhecimento de um não-saber irredutível, que é o próprio inconsciente. Eles encontram ali a maneira de “... prosseguir um trabalho de elaboração orientado pelo desejo de uma invenção de saber e de sua transmissão integral, o que Lacan deveria mais tarde chamar matema. Sobre este fundamento de abismo, recoberto pelo seu nome próprio, ele estabeleceu sua Escola e chamou à ‘reconquista do campo freudiano’”.

Essa reconquista ganha um sentido novo no contexto da “volta das férias lacaniana”.

Algo da Vida de Lacan deve ser reconquistado dos estereótipos, da desinformação, da franca difamação e da universitarização pacificadora, oculta sob o equilíbrio a ser preservado entre elogiosos e críticos.

Saberemos melhor com qual corrente da ideologia francesa estamos lidando e porque ela quis tanto fazer de Lacan um Católico Maurrassien e não Sollerssien. Ou porque fizeram dele o retrato de um monarca absolutista.

A partir do acontecimento de ruptura que vivemos nesse momento, poderemos ler a estrutura das elucubrações que fizeram o estofo daquilo que passava até então por uma biografia de Lacan e que conseguiu de vez em quando seduzir distintos espíritos.

Eis-nos ao bivium de duas lógicas, duas sensibilidades, duas vias éticas.

Cada um poderá escolher.

Paris, 9 de setembro de 2011.

Gemas: Vida de Lacan

Clotilde Leguil. Miller, passador de Lacan. Nem é um romance, nem uma obra de história da psicanálise, nem exatamente uma psicobiografia. Vida de Lacan, de Jacques Alain Miller, da qual podemos ler a primeira parte nessa “volta lacaniana” de 2011 enquanto esperamos o resto previsto para meio de outubro é sobretudo algo como uma confissão, um esforço para prestar contas do ser de Lacan a partir do efeito que sua maneira de existir produzia sobre a vida do outro, em particular sobre aquele cujo destino é hoje o de transmitir a orientação lacaniana na psicanálise.

Jacques-Alain Miller sempre lembrou a que ponto ele havia tentado se apagar do Seminário, preferindo não aparecer nem na capa, mas simplesmente na primeira página como aquele que estabelecia o texto. Sua presença é, no entanto, bastante sensível no momento em que se compara a estenografia do seminário e o Seminário estabelecido. O primeiro aparece como um material rico, certo, mas bruto, provido das notas dos auditores de um Lacan ainda vivo. No segundo sua presença está em uma obra agalmática da qual tanto o título dos capítulos, as escansões conceituais no seio das lições, o recorte, as reformulações aparecem como nota de música fazendo ressoar a fala ensinante de Lacan - algo como a melodia própria do sujeito vivo que ele era. Falar da vida de outrem é, porém, outra coisa. É ainda mais delicado ao século XXI no qual a intimidade é exibida sem pudor como mercadoria espetacular. Deve-se, então, fazer da vida de outro um romance resolutamente fictício ou uma obra de valor científico apagando a dimensão interpretativa de todo este relato de vida para escapar das derivas de nossa sociedade voyeurista? Como falar dos mortos quando se está vivo sem lhes enterrar uma segunda vez?

Sartre considerava em O Ser e o Nada que só o sujeito morto tinha acesso a esse status de objeto inerte para alguém. Não existindo mais, a não ser para um outro que pode dele fazer sua coisa, sua vida arremata-se e não comporta, assim, mais nenhuma indeterminação. Escapando a estes diferentes obstáculos Jacques-Alain Miller consegue inventar sua própria versão da vida de outro.

Ele escolheu desta vez evocar a vida de Lacan não se apagando, mas assumindo falar a partir do que a existência deste homem pode deixar de traços nele, sem transformar seu relato em romance, nem em obra científica. Graças à presença da sua enunciação, seu relato de Vida de Lacan tem um alcance ético. Jacques-Alain Miller desvela para nós que sujeito era Lacan, que falasser foi Lacan para ele e para aqueles que o encontraram como analista, como ensinante, como amigo, ou mesmo como inimigo - sem jamais ceder à tentação do objetivismo. Distante de qualquer interpretação psicologizante, ele tenta abordar Lacan o mais perto do inconsciente sem invocá-lo como um ser enigmático.

É neste sentido que Vida de Lacan nos aparece na linhagem direta daquilo que Freud pôde obter com seu Leonardo, sem jamais buscar fazer esquecer a fascinação que exercia sobre ele este ser estranho e que era o grande pintor.

Assim como Leonardo foi, por seu gênio e por suas contradições, um ser incompreensível aos olhos de seus contemporâneos, Lacan foi também este homem estranho e genial que seus contemporâneos, mas também sua posteridade, não conseguem compreender. Jacques-Alain Miller faz de Lacan o seu Leonardo e nos fala dele e desse ponto indizível que constituiu sua relação com Lacan, este ponto que ligou sua existência à obra e à fala de Lacan de maneira radical. Há, então, algo que evoca o passe nesta empreitada que tenta circunscrever o que faz o vivo de um sujeito, seus sintomas, suas criações, suas contradições.

É um pouco como passador de Lacan que Jacques-Alain Miller fala, nos transmitindo através de seu texto aquilo que Lacan tocou nele, despertando seu desejo de psicanalista. Vida de Lacan nos conduz, assim, a descobrir Lacan não como nos apropriamos de um percurso e de um sistema de pensamento fixado, mas a partir daquilo que pode nos tocar também na vida deste homem que revirou o destino da psicanálise e ao mesmo tempo o nosso.

Deborah Gutermann: O brilho de uma vida. Na literatura há meteoros e há rochedos. Os primeiros são fulgurantes, os outros barulhentos, faladores e sujam-se às vezes. A Vida de Lacan de Jacques-Alain Miller é um bólido. Operando uma sutil distinção entre os dois gêneros da biografia e da “vida” e tomando o modelo na vida dos “homens ilustres”, Jacques-Alain Miller remete a uma série de oposições que baliza o campo tanto de uns quanto dos outros.

Enquanto a biografia é a obra do escravo aplicado que se revolta fossilizando aquele que consagra, a segunda está do lado da ética. “Vida” se estende em todos os sentidos do termo e trata da vivacidade de Lacan. À cronologia empobrecida, a qual se liga o relato biográfico, se opõe o efeito de witz, cuidado com o detalhe, pela anedota que acerta o alvo. Onde a trama narrativa do relato biográfico se ordena em torno de uma linearidade da qual resulta um sujeito reduzido a “sujeito de estudo”, a “vida” nos chega com o detalhe do vivente, daquilo que o singulariza de maneira irredutível. O tempo da “vida” é, então, o do instante. O tempo da biografia se estende para tecer a trajetória que começa fatalmente pelo nascimento, para terminar com a morte: Sim, tu és mortal, um entre outros, escrito em uma época. És produto dos mesmos complexos que vêm justificar, em seguida, o julgamento moral quando a hora do balanço chegar. A exemplaridade transforma-se em pendão para que o biógrafo faça sua festa.

Jacques-Alain Miller, que mantém vivo o pensamento de Lacan há mais de trinta anos, deu um passo para o lado quando empreendeu em se interessar pela pessoa de Lacan. Ali onde o biógrafo é o dublê, que se coloca no eixo do rival, aquele que redige esta vida, cria a ruptura. Ele presta homenagem ao pensamento de Lacan extraindo todas as consequências de seu ensino para aplicá-lo à sua vida. Relato do real, nos interstícios é que aflora Lacan, na sua posição fora do standard. Distante da temperança, o Lacan desmesurado, da impaciência também, e, sobretudo o homem de desejo é que, ali, encontramos.

François Regnault. A esmo! Quando fazia 30 anos do desaparecimento de Lacan aconteceu da fórmula que ele tinha aperfeiçoado sob a forma “não há relação sexual” tornar-se um enigma popular. Muitos já a conhecem, todos os analistas lacanianos, cada um deles, tentaram dar a ela sua inatacável interpretação. Eu mesmo, várias vezes arrisquei a fazê-lo, tentando torná-la mais e mais evidente a ponto de eu não poder citá-la sem que de novo sua claridade me cegasse. E mesmo um livro havia tentado dar a ela um sentido filosófico.[i] Soube ainda que ela atingiu até os meios eclesiásticos, nos quais alguns adotaram-na como uma espécie de complemento de informação e suplemento de alma.

Uma das primeiras acepções deste grande achado me tinha sido transmitida por um filósofo sensível aos costumes desse tempo ao observar que as vicissitudes, os fiascos, os impasses da sexualidade adolescente, verificavam à saciedade, o implacável apotegma. Sabemos que Rohmer tinha a si mesmo imposto este princípio em seus Contos Morais (por isso mesmo morais) ao fazer de tal maneira que jamais algum de seus personagens principais passassem ao ato (sexual) - ele ilustrava a fórmula no sentido do amor cortês.

Certamente Lacan não foi cego (ou surdo) bastante para pretender que ninguém jamais fazia amor com alguém – aconteceu-lhe até de dizer no final cada um encontra seu cada qual (assim como para cada um sua lacuna [“à Lacan sa lacune”]).

Mas ficou incomodado pelo fato de que em suas primeiras explicações antes do achado, ao introduzirem-se no quadro-negro os matemas sobre a sexualidade, um analista tivesse declarado: “da próxima vez que eu for trepar, vou com minha máquina de calcular!” gracinha gaulesa que só faz reenviar à função fálica, a que oporei aquilo de que Corneille pôde se vangloriar quando, bem recentemente investido de sua função de esposo, escreveu a um amigo: “Creio ter-lhe explicado o que sinto quanto às benedições do casamento e agora atiro a esmo [a coup perdu] tão bem quanto você”.[ii] Este “a esmo”, a fundo perdido, não é a definição corneliana da inexistência da relação sexual?

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Creio atestar neste aniversário de sua morte que Vida de Lacan, que nós devemos a Jacques-Alain Miller, é traçado do mesmo lado desta autenticidade que me reivindica para seu modelo e restitui a única ênfase de verdade com a qual nada se compara a não ser a íntima certeza que tiveram todos aqueles que conheceram Lacan e o reconheceram assim: uma das raras coisas no mundo que valiam a pena.

Acabo de descobrir que Jacques-Alain Miller abandonou o Seuil, mas não sem Lacan! Na fábula de La Fontaine, ninguém ultrapassava o limiar (Seuil) do antro do leão, até que tivéssemos compreendido o por quê. Só que no caso atual ultrapassa-se o Seuil e deixa-se o seu antro, mas porque o leão não é mais um leão!

Jacques Lacan e os nomes de pássaro por Edith Msika. “Nada de Lacan no Seuil mais, segundo a fórmula de JAM ouvida terça-feira a noite no Pullman Montparnasse. Seria uma razão para dar a Lacan as edições da Martinière?

Que M. da Martinière edita livros, belos livros, livros com muitas ilustrações, livros que gostamos de ter na mão, manipular, folhear etc. é uma coisa. Ele o faz de maneira cuidadosa e exigente, vi com meus próprios olhos durante um estudo junto aos consumidores para um guia de vinhos das edições da Martinière da qual a “assinatura do grupo é marca de referência: de livros prestigiosos sobre a foto, a natureza, a viagem, a arte, o patrimônio e a espiritualidade". Que essas edições que têm tal marca de referência possam dar sua grife aos livros de Lacan é outra questão.

Em que a psicanálise entraria em um catálogo proposicional do qual cada um dos outros termos desenharia o horizonte do otium, do lazer, enquanto que ela é quase tudo menos isto? Vocês me dirão: não se escolhe seus vizinhos. Dirão, além disso, que não se deve idealizar, não se deve ter saudade, deve-se acomodar com a realidade tal qual ela se tornou.

Fazer Lacan avizinhar-se dos segredo dos mentalistas, ou 500 saladas, seria ter uma relação equilibrada com a dita realidade?!

Os efeitos possivelmente encantadores ou deletérios da colusão de dois nomes próprios sobre uma contra capa constituem um dos parâmetros b-a-básicos do conhecimento do marqueteiro editorial advertido. Outra coisa é a identidade: o Seuil é uma editora, Gallimard é uma editora, as quais acolhem (mais ou menos bem autores). Outra coisa ainda é o posicionamento, o campo coberto pela editora. A baseline do Seuil, como quer que se pense, é a de um editor, não de uma marca: “publicar obras que permitam compreender nosso tempo e imaginar no que o mundo deve tornar-se”.

As edições da Martinière se enunciam como uma marca. Há (ainda) uma diferença mesmo se ela tende a se reduzir: uma marca vende produtos; um editor ou uma editora edita livros. São livros destinados a serem lidos, e não objetos, por mais decoradores que sejam, tal como um dicionário de ornitologia da qual a função de ornamento é ao menos tão importante quanto a bela ciência natural que ele transmite.

Com todo meu respeito pelo escrito, o nome do autor, o editor. Nada mais, nada menos. Edith Msika, editada por POL, editor.

Resposta de JAM: Acolho com simpatia esta bela carta, que diz belas coisas. Eu lhe responderei Edith Msika seriamente e longamente assim que tiver um momento. Responder às suas fortes objeções fortificará minha escolha, que foi obra de um instante, instante de ver. Sua carta constitui para mim um convite a entrar no “tempo para compreender”. O momento de concluir, um contrato, virá ao final: por enquanto só existe um aperto de mão. O sentido que dou à minha entrada nas edições da Martinière, com Lacan e com o Campo Freudiano tornando-se outra coisa, será que Hervé o aceitará? Eu me esforçarei, em todo o caso, em arrastá-lo conosco. Eis em cima do que tomarei meu ponto de partida amanhã na casa de Mollat em Bordeaux.

O rei secreto por Philippe Hellebois Caro Jacques-Alain Miller, Você dizia que seu sobrinho de Lacan: “não é um panfleto, mas uma sátira; não há inimigos, mas ridículos”. Gosto muito desta fórmula mostrando que o outro é idiota antes de ser malvado. Lacan se e embrulha-se ainda mais. Ou seja, o ridículo pode tornar-se ruim, é até mesmo a não diz algo assim (onde?): o embrulhado se enraivece por embrulhar- sua deriva “natural” para não dizer lógica.

Ridícula, é a “rainha” autoproclamada melhor especialista de Lacan. Tanto por escrever sobre Lacan do qual ela não absorve nenhuma gota – o último livro é aflitivo – quanto falando, tal como bem indicou a pena molieresca de Deborah Gutermann, como um casaco de peles pregando diante de uma sala vazia pela metade.

Gostei muito dessa frase de sua Vida de Lacan: “foi assim que sempre vi: é a si mesmo que a gente julga quando condena Lacan. Quem reconhece nele uma figura de inimigo desenha sua própria figura”. Lacan se mantinha, portanto, em uma posição forte e com ele a psicanálise que dele se autoriza. Não é uma das razões para as quais essa posição é tão fácil de defender (sobre o plano dos argumentos claro)? Você mesmo disse em algum lugar, seguindo Lacan, que a psicanálise tem sempre razão e que essa é sua fraqueza, o adversário não tem nenhuma chance de escapar à sua própria ferocidade.

O que você não disse, mas que é evidente, é que esta posição é também a sua. De fato em que se tornaram os seus adversários? Desaparecidos, perdidos na nebulosa de seu próprio rancor!

Tudo isto me leva a esta questão que muitos entre nós colocam: porque você conserva esse lugar singular de “rei secreto” que BHL reconheceu em você há algum tempo? Dirão que hoje você é menos secreto que naquela época (cf. o caso Accoyer), mas apesar disso seu curso mantém-se na maior parte inacessível à opinião esclarecida por ser espalhado em publicações específicas (cf. a expressão de sua filha no LQ). Os canalhas lhe colocam de lado, é uma evidência. Mas não é uma arma que eles extraem de sua própria discrição tornando-a contra você mesmo?

Seu curso a que você considerava no início dos anos 80 (e eu ainda me lembro de você dizendo isso) faltar ainda um título sério porque sua série era curta, agora mudou de estatuto. Ele conta com ao menos 30 volumes que mudaram a psicanálise (ao menos aquela praticada na ECF) e merece, merece não, exige, outra forma do que aquelas em que se encontra atualmente disperso. Esta forma existe, mas em outra língua que não a nossa, o espanhol. A publicação na medida em que posso julgar ignorando a língua, é cuidadosa, sua forma é elegante e sóbria, e sem imitar aquela que você inventou para o seminário. Abrindo-se o “Parceiro Sintoma”, estabelecido por Sylvia Tendlarz, descobrimos o sintagma enigmático que só temos em francês; títulos são tão fortes quanto evocadores, tais como: o que é ser lacaniano?; a revalorização do amor; uma partilha sexual; o conceito de gozo. São fogos de artifício cuja ausência torna a cena francesa um pouco mais lúgubre.

Você deve ter certamente boas razões de não ter se apressado – você escreveu que Lacan não era um autor apressado e percebemos que é também a sua tendência – mas não chegou a hora de que seu curso finalmente saia da sombra?

Resposta de JAM: Você tem razão. É hora. A demanda se faz mais insistente, pressiona. Agnès me endereçou um email, inacabado, sobre o mesmo tema. Se eu publico agora meus 30 volumes, eu me seria conformado com o lugar da fórmula de modéstia devidamente repertoriada por Curtius, que gostaria que o autor peça perdão de publicar. Faço endossar este pecado pelo Outro: sua demanda, sua comanda.

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i Alain Badiou e Barbara Cassin.

ii Carta de Corneille a Monsieur Goujon, advogado do conselho privado do rei, Rouen, 1° de julho de 1641. Obras completas, Pléiade tomo 1, p.1054.

O Correio de 9 de setembro de 2011

Lilia Mahjoub: Caro Jacques-Alain, é isso! Reviravolta-se por todo lado e eu saboreio esta vitória, a sua e de todos os que lhe amam. É divino! Respiro. O ar da ilha de Ré está em Paris. E o combate continua. Beijos. Lilia.

Rodolphe Gerber: no último ano de sua vida, Lacan esteva presente com uma intensidade da qual nenhuma palavra permite dizer a densidade. Ele tinha me dito, em julho, de vir no dia 2 de setembro. Gloria me recebeu à porta gentilmente: “O Doutor Lacan ainda está de férias, volte na semana que vem”. Nem sombra de dúvida que viesse dar bruma às minhas esperanças, eu aguardava com certeza: Lacan estaria lá como Gloria tinha dito. A mesma Gloria que eu ouvira Lacan chamar um dia em voz alta de seu consultório enquanto tinha diante dele, sobre sua pequena escrivaninha, um prato guarnecido por uma fatia de carne e um copo de vinho tinto. “Gloria, está gostoso!” O primeiro paciente do dia 9 de setembro, que vinha regularmente às 7 horas, me disse de uma notícia ouvida no rádio: um grande psicanalista teria morrido. Recusei por longo tempo a evidência e, anos mais tarde, busquei quem poderia substituir o insubstituível...

Guillaume Darchy: Lena, 13 anos, volta do colégio logo após as férias e me pergunta: “Jacques Lacan? Está vivo?” Eu: “Estamos comemorando ao 30º aniversário de sua morte”. Puxa, me diz ela “nosso professor de francês nos pediu para citar autores contemporâneos e eu escrevi Lacan”. No 4º ano do fundamental do Collège Carnot, a volta às aulas será também lacaniana.

Daniele Lacadee Labro: Roudinesco em Télérama. Sua “televisada” merece uma “descascada”. “Lacan tinha inibições para escrever, mas sabia manejar a linguegem com gênio”. Nada disso, em vez de gênio, lógica e uma atualização da instância da letra no inconsciente. Onde estão as inibições? Nada, igualmente de “sombra do pensador-mestre”, conjurada pelo discurso, mas sim a necessidade de que o leitor dos Escritos coloque algo de seu. E deixo de lado os pontos mais virulentos da entrevista.

Aurélie Pfauwadel: Judith Miller está bem viva – para aqueles que são levados a encontrá-la no contexto do Campo Freudiano, não há nenhuma necessidade de esperar a justa cólera e o ato de coragem do qual ela dá provas no Le Point de hoje para perceber isso. Lamento somente que os jornalistas Christophe Labbé e Olivia Recasens desenhem a cartografia do conflito nos próprios termos que Roudinesco utiliza em sua biografia, por exemplo quando ela põe em paralelo a IPA e a AMP ao afirmar: “As duas têm o ponto comum de serem legitimistas, ou seja, legal e familiarmente depositárias de uma imagem oficial do movimento, de sua doutrina e de sua prática”. Este “legitimismo mileriano” consistiria essencialmente, segundo ela, de um “entrincheiramento doutrinal”. Não se sabe onde esses jornalistas foram pescar que desde a morte de Lacan existiriam “duas correntes que, desde o seísmo, disputam” o legado intelectual dele. Duas correntes? Somente? Os millerianos e os “roudinesquianos”? Esta releitura dual da história do lacanismo nos últimos 30 anos é doidinha.

O título do artigo “a filha de Lacan entra em guerra” põe, no entanto, o ato do lado de J. Miller: é ela que acende o rastilho e provoca ER para um duelo, exibindo em sua bela foto o sorriso sereno da guerreira aplicada. Então, porque dizer que ER teria o poder de “incendiar o planeta lacaniano”? O filme é projetado para nós de cabeça para baixo, como em uma câmera obscura , Judith Miller, manterá mesmo assim a cabeça erguida, indo até o fim.

Yves Vanderveken: A questão do momento: “o que resta de Lacan?” O próprio enunciado sugere que só restariam... restos. Esta tese explícita é substituída por uma esfera acadêmico-político-editorial das qual percebemos bem os contornos. As formas são diferentes, é verdade, elas vão do intelectual ao fútil. Só há duas possibilidades: ou bem se trata de matar, de apagar algo que resta justamente a mais, de desapaixonar, terminar com a coisa e com todos seus brotos. Ou bem, há nisso uma cegueira que não há como ser explicada pelo fato de ser – por um nada que seja - desconectada de uma realidade concreta, de campo.

Pois, enfim, hoje são milhares de praticantes que se apoiam e se orientam a diversos títulos, todos os dias através da Europa e além, em sua formação e em sua clínica, em setores os mais diversos, sobre o ensino de Lacan graças àquele que nos ensina a lê-lo, Jacques-Alain Miller. Isso porque, confrontados ao real desta clínica, sabem que in fine é ali que encontrarão matéria para orientar-se de maneira autêntica. Sem ignorar o inconciliável e o incurável. Eles sabem – porque o experimentam – da desistência das orientações completamente destacadas do humano cuja atmosfera valoriza e apóia a imposição. Este vento que querem nos vender, eles vêm dele, todos os dias, a impostura.

Estes praticantes atestam às centenas o quanto à prática deles e os efeitos dela são por ele interrogados em cessar. É neste campo, o do ensino de Lacan e de Jacques-Alain Miller, que conceitos são trabalhados, estudados, remanejados e que novos conceitos emergem em conexão direta com o real. Congressos científicos lotados, publicações e numerosas revistas atestam isso. Algumas se vendem no plano de dois a três mil exemplares – e aqueles que trabalham no meio editorial sabem o que isso significa. Além dos já citados em LQ, forneço dois ou três exemplos, em língua francesa.

Quarto (Revista de Psicanálise publicada em Bruxelas), n. 94-95: “Retour sur la psicose ordinaire”. Quase 3000 exemplares vendidos. Pesquisadores, clínicos, analistas, psicólogos, filósofos, professores, universitários (mesmo americanos) etc. interrogam como o conceito de psicose ordinária, inventado por J. A. Miller a partir do último ensino de Lacan vem ressoar com um real do campo deles. E no caminho interrogam o próprio conceito. São dez anos de trabalho de toda uma comunidade de investigação.

Mental: revista verdadeiramente internacional, da Euro-Federação de Psicanálise, número 26, “Como opera a psicanálise?” Os praticantes da Europa inteira atestam. Seu próximo número terá o título “A saúde mental existe?” Mais de 120 comunicações, do mundo inteiro vindas do Congresso sobre o mesmo tema em Bruxelas.

Parafraseio Sollers: Citações como provas!

CONCEITOS

O ponto de interrogação por Anaëlle Lebovits-Quenehen

“Porque Lacan” (Sem ponto de interrogação): este título, do último DiIable é inspirado de Claude Lanzmann – foi o que disse na tribuna do Pullmann Montparnasse terça-feira à noite.

Lanzmann tem a arte dos títulos impactantes, mas há algo mais. Este algo mais disse-o a Sollers, pessoalmente, ao descer da tribuna. Ao nomear este número 9, me inspirei de seu filme Porque Israel. Entendi, no Pullman, o que havia irresistivelmente orientado minha escolha quando decidi lançar o Diable nas pegadas de Lacan há alguns meses. O apagamento de nomes tem uma história. Ela, digamos, me conhece bem.

Isso posto, sabendo disso, mas recalcando-o ao mesmo tempo para melhor reencontrá-lo na terça passada, eu não podia prever a forma assumida pelo apagamento de Lacan trinta anos após sua morte: de um outro nome, ao qual o associam aqueles que lêem Lacan, o de Miller, de quem Lacan tinha feito, legalmente e por contrato, o co-autor dos Seminários. Dessa forma, fui eu também surpreendida quando as hostilidades começaram nesta volta das férias. Passada a surpresa, porém, há nisso uma lógica, implacável, que se desenha.

Miller, de prenome Jacques-Alain, se mantém próximo do real do qual Lacan havia empreendido percorrer. Ele é fiel ao espírito que insufla o ensino de Lacan, que ele comenta e esclarece há muito tempo. Ainda vivo, Lacan tinha a ideia de que Jacques-Alain Miller entendia o que constituía para ele questão. Certamente ele era o que melhor podia estimá-lo. Mas não é isso o essencial. O essencial se revela e irrompe no seguinte: todos aqueles que se interessam por Lacan conhecem o papel de Jacques Alain Miller na transmissão de seu ensino. Todos, sem exceção. Aqueles que seguem seu ensino e no mundo inteiro o lêem sabem disso. É óbvio. Mas os que nada querem saber do agalma de Miller, que o levam para a lama e o tratam como uma m... (nas duas vertentes do objeto a) atestam a mesma coisa, justamente por apagá-la. Eles o apagam tanto mais encarniçadamente quanto mais sabem disso.

Uma questão, porém, me importuna. Por que aqueles que decidiram apagar Lacan – e neste início do ano letivo, igualmente o nome de Miller com quem eles o confundem -, professam ler Lacan, ou pelo menos levam a crer, sobretudo talvez se levem a crer, nisso? Por que passar todo tempo a frequentar Lacan se é para lixá-lo, lavá-lo, engomá-lo? Por que Lacan e não um pensador mais liso? Os filósofos de balcão não faltam, nem na história nem em nosso mundinho. Por que se interessar por Lacan que encarna o paradigma da originalidade, se no final é só para fazer dele um original como outros? A esta questão só vejo uma resposta. Ela me vem de uma analogia que estabeleço entre os especialistas de Lacan que decididamente o ignoram para melhor fazer desaparecer o real de que ele se aproxima e estes filósofos que Pascal destacava como consumindo seus dias na filosofia com o objetivo preciso de não pensar.

Um conselho a todos que estão sempre em avanço sobre seus próprios excrementos (tomo emprestada esta expressão de Chamfort), um conselho aos amantes de m... que odeiam M.: metam-se a afugentar o real, dediquem-se a isso e vocês verão, ele resiste – é da estrutura. Esta lição, recebo-a de Lacan himself.

Lacan Cotidiano Anne Poumellec, editora

Publicado on-line por Navarin Editora, Eve Miller-Rose, president



Tradução: Marcus André Vieira

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