Quinta-feira, 19 de Janeiro de 2012 – 7h [GMT+1]
NÚMERO 133
Eu não teria perdido um Seminário por nada no mundo – PHILLIPE SOLLERS
Ganharemos porque não temos outra escolha – AGNÈS AFLALO
•A ROSA DOS LIVROS•
por Nathalie Georges-Lambrichs
•O ANTIGO E O NOVO•
“Que tirano, esse Freud!â€
por Armand Zaloszyc
•CORREIO•
Uma carta de São Paulo
Fotografia tirada por G. Didi-Huberman, quando de sua viagem a Auschwitz
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•A Rosa dos Livros•
por Nathalie Georges-Lambrichs
Ecorces, Georges Didi-Huberman, Paris, 2011, éditions de minuit, 74 p.,7,5 $
Corpos; cenário; mais, ainda.
[Corps, décor, encore]
«nenhuma medida comum…»
Parece-me que George Didi-Huberman chegou ao que queria, isto é, fortificar em si uma vontade nada menos que desejável, um querer tornar possível e transmissível um ato praticado de não ficar lá, nesse além do desejo que é também um aquém, em não recuar diante de qualquer apreensão – seja aquela da crítica ou da indiferença, da indignação ou dos mal entendidos, mas cumprir, em pessoa, essa viagem que acredito destacar o registro dos deveres, no que tange à dívida.
Há lugar para mencionar que essa viagem sucede à Images malgré tout [2004], fazendo, assim, desta última uma etapa num percurso inacabado.
O primeiro desses deveres foi, portanto, fazer essa viagem. O segundo, incluído no primeiro, mas em nada previsível, terá sido produzir, em seguida, alguma coisa que testemunhe sua empreitada, após ter posto em marcha essa viagem a Auschwitz Birkenau, e, efetivamente, ter cumprido uma visita a esses lugares: a sua própria visita.
Lendo seu livro, olhando as fotografias que fez e nele incluiu como contraponto em vista dos textos que escreveu, devo dizer que os imensos preconceitos que seu livro despertou em mim se desfizeram um a um, logo que entendi do que iria se tratar. Creio que é porque a leitura desses textos me fez escutar que G. Didi-Huberman não teve medo de ser quem ele era, e, por isso, conseguiu transmitir, numa tonalidade que soube captar, e que o ultrapassa, quem ele era fazendo aquilo, e portanto, já não é mais repentino: aquele que queria ir a Auschwitz Birkenau e, ao mesmo tempo, não queria, aquele que em sonho – mas que sonho – já tinha ido mil vezes, aquele que queria tudo menos ir lá, aquele que quis escrever, mas disso não conseguiu escrever muito, e especialmente, sobre o tema das fotografias relativas à verdade contida naquele nome e naquele lugar, com as inúmeras facetas de verdade infinita e indizível, sempre traída pela palavra daqueles que a quiseram revelar, sem ter achado o ponto a partir do qual deixar o leitor escutar sua própria participação, sua responsabilidade, deixar perceptível seu motivo na partitura, ele que aguardava um sinal qualquer para se pôr em movimento.
Soube virar as costas a todos, se transportando de repente para esses lugares, com sua maquina fotográfica, seus olhos, ouvidos, memória, julgamento, mas também com seus mestres e seus interlocutores: Freud, Walter Benjamin, Claude Lanzmann, entre outros.
Da mesma forma, quer dizer, diferentemente em tudo, Yannick Haenel soube em Le Sens du calme (minha crônica dedicada a esse livro está no LQ n° 121) passar esse momento em silêncio, sem impor às palavras o fraseado que requerem, do que foi pra ele ver e ter visto Nuit et Brouillard [Noite e Neblina], de Alain Resnais, durante a infância: uma deflagração, um fogo imenso que havia pulverizado todas as palavras.
«sem refletir muito…»
Quando comecei a escrever esta crônica, pensava, logo antes, que seria impossível, deslocado e detestável. No entanto, ao mesmo tempo, já estava prestes a abrir o computador e cometer essa primeira frase, logo depois de ter respondido a um amigo com quem me correspondo e que perguntava sobre o que eu estava lendo, que estava com Ecorces sobre os joelhos, e que essa leitura despertava em mim a questão recorrente e lancinante de saber se eu morreria sem ter estado em Birkenau, «eu ia dizer» – lhe escrevi, «antes de ter estado…». Dizia-lhe também que essas frases e essas fotografias compõem uma leitura intensa do acontecimento que foi, sem nenhuma dúvida, para G. Didi-Huberman, ir para lá e lá se encontrar, e que, claro, o leitor nem por isso se acharia dispensado da viagem, nem tampouco seria chamado para se por na estrada, pois aquela leitura o teria enriquecido, como o urânio, pensava eu, mas não seria uma obrigação, um dever? «Pergunto-me», e minha mensagem acabava assim, “se não estou começando a escrever uma crônica que eu ainda pensava impossível antes de te escrever minha última mensagem desta noite. E que, de resto, absolutamente só poderá se escrever uma vez esta causa entendida e este fato assumido†.
Ainda não tinha acabado o livro quando comecei esta crônica. Eu tinha parado na substancial citação que o autor faz de uma passagem de W. Benjamin (p. 65) por causa da fórmula que ele utiliza: «a arte da memória» que evoca sempre para mim a leitura inesquecível (!) de Frances Yates; e eu havia então formulado interiormente que era justamente todo o contrário que ele acabava de demonstrar, antes mesmo de pensar, logo em seguida, que isso era mais o seu avesso, ou seja, que aquilo fazia avalizar o impossível, já que longe de dever erigir um monumento virtual pra alojar aquilo que tem o nome Auschwitz Birkenau, nascemos com a memória de Auschwitz inscrita na nossa carne, uma memória inexpugnável que não para nunca de nos deportar, ou seja, mais que uma ferida, um real buraco da memória, que nos incumbe então a fazer algo digno desse buraco, uma habitação, sem dúvida nenhuma.
O pronome «nos» que acabo de usar, não o censurei porque se impôs a mim, e não achei outro, apesar dele não ter por correlato uma carne. Como tal, portanto, não existe, ou melhor ex-siste à toda carne, ele a envelopa ou a mascara. Ora, cada um de nós nasceu com uma marca particular, ou sem marca – o que é uma outra marca, como o demonstra François Regnault emNotre object a (Paris, Verdier, 2003) – desse nome e desse lugar onde o ser nos escapa absolutamente e que se infiltrou em nós, impôs a nós. Qual conjunto nós compusemos, cujo referente seria Auschwitz Birkenau, o lugar comum e a indicação colocada num painel de estrada assinalando um lugar que não está em nenhuma outra parte fora deste mapa aqui?
Ora, é la onde, um dia, naquele dia, G. Didi-Huberman decidiu transportar seu corpo, com seus sentidos, suas lembranças beirando o buraco de sua memória, e suas máquinas, para depois escrever e publicar um texto, relativo à viagem e à visita, em seu nome, perene, garantidor de sua experiência e de suas mutações. Ele sozinho.
O fato é que comecei a escrever, que alguma coisa me empurrou a produzir um traço no turbilhão desta leitura, como para indicar sua incompletude de estrutura, antes mesmo de ter chegado ao fim do livro e de ter lido o último texto, cujo título (mas é a imagem que forma o título do texto que, ele, não existe) – em forma de gaguejo, foi uma surpresa – mesmo se só em parte, já que redobra o do primeiro, o que eu ainda não sabia.
Não sabia que, por debaixo da primeira casca, o autor iria encontrar uma segunda, que ele já a tinha achado, procurando-a sem a menor esperança.
Entendo que aquilo gere um espaço, um intervalo propício a alojar, colocar em série outras imagens e outras escritas, bem mais ao rés do chão [au ras des paquerettes], à flor daquele chão que expele e ainda expele cacos, fragmentações,purloined, com e sem fim.
Cascas [Ecorces], literalmente, não é jamais exatamente o corpo ou os corpos [les corps], nem o cenário [le décor], nem o mais, ainda [encore]. É o resíduo e a condensação de tudo isso, e do que lhes falta, daquilo que não é mais que uma película protetora que se desfaz sob as unhas, e, de repente, deixa aparecer um suporte, uma superfície, livre de escritura, e que interroga as «frágeis decisões do olhar», para tentar dizer «alhures no mundo» - [«ailleurs au monde»] - (empresto esta expressão do título de uma coletânea de poemas de Patrick Reunaux). Paul Celan, diz-me o meu correspondente, usava por debaixo das roupas, cascas, diretamente na pele.
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•O Antigo e o Novo•
«Que tirano, esse Freud!»
por Armand Zaloszyc
A charmosa jovem que me fez esta observação, na saída do filme de David Cronenberg, a justifica pelo episódio onde Freud, após ter analisado um sonho que Jung acabava de lhe fazer confidência, se recusa a lhe contar, por sua vez, um sonho muito rico que ele diz ter tido. É, acrescenta ele, para não perder a autoridade.
Ouvi dizer que são muitos os espectadores que compartilham da opinião de minha charmosa interlocutora. Aliás, o próprio Jung, como o filme o menciona, acha nisso o argumento para uma pesada acusação dirigida a Freud.
De fato, no exato momento desta conversa entre os dois homens, se produz para o espectador uma linha de demarcação entre quem será sensível à ironia de Freud, em sua proposição, e quem, nela, não irá encontrar nenhuma espécie de ironia.
Uma linha de separação com traçado pouco discernível, apesar da distância diametral de pontos de vista que ela irá ordenar, contudo, imediatamente.
Se não há a menor ironia na fala de Freud, é, mais do que sua autoridade que, de todo modo se encontrará diminuída, seu poder que Freud quer preservar. É o sentido da observação sobre o seu caráter tirânico.
Se a fala, ao contrário, for marcada de ironia, comporta por isso mesmo um equivoco que abala o sentido óbvio que ele parecia oferecer. Diz então: não, não se trata disso. É uma interpretação duplicada em uma pequena nota que a torna vaga: Res tua, caro doutor Jung, in oratione agitur [No discurso do outro, a coisa em ti se agitou!]. E é por isso que ela te pega tão forte.
Mas, o que é que se deve perceber, ou supor, para tomar a coisa assim? É um não sei o quê que se inscreve na fala de Freud, infinitamente delicado, no limite do perceptível, mas com consequências enormes, e que se chama, às vezes, com Lacan,o desejo do analista.
Será que consegui mover sua convicção, charmosa amiga, ou não?
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•CORREIO•
Uma carta de São Paulo
Lacan Cotidiano se lê também no Brasil, em francês e em português, graças ao trabalho de nossos colegas da Escola Brasileira de Psicanálise, sob a responsabilidade de Maria do Carmo Dias Batista e Maria Cristina Maia de Oliveira Fernandes.
Eis uma carta, a primeira, proveniente de um intercâmbio entre uma das obreiras (1) da EBP, Antonia Claudete Amaral Livramento Prado e Maria do Carmo.
Com o prazer de ler outras cartas de vocês, e, desta forma, tecer uma nova ponte entre os nossos países…
A equipe de redação
Cara Maria do Carmo
Gostei da sugestão da equipe de Lacan Cotidiano de publicar nas Cartas nossos textos traduzidos em francês. É uma maneira muito interessante de desenvolver ainda mais nossos laços e nossas culturas.
A propósito da tradução do texto de Prigent, como já lhe disse, não foi uma tarefa fácil, mas foi muito agradável. O Artigo de Hervé Castanet é muito interessante, tanto por sua maneira de ler o texto de Prigent, quanto na articulação que propõe entre o poeta e Lacan, especialmente quanto aos afetos que esses versos suscitam no leitor.
Essa tradução foi um verdadeiro esporte radical. Me contorci não só linguisticamente, mas, sobretudo, emocionalmente. Havia, a cada linha, novos desafios sempre mais estimulantes que me levaram a desejar descobrir os outros trabalhos de Prigent. De fato,Météo des Plages é um romance tocante.
Enfim, agradeço seu convite para traduzir o número 117 de Lacan Cotidiano. Foi verdadeiramente uma experiência muito agradável.
Cordialmente,
Antonia Claudete Amaral Livramento Prado
1) Lacan J., «Função e Campo da palavra e da linguagem». In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar. 1998, p. 242.
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Tradução: Marie Christine Giusti
Revisão: Maria do Carmo Dias Batista
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