19 de novembro de 2014

LACAN COTIDIANO. Daniel Roy, Estela Paskvan, Marlène Belilos.

Interpretar a criança

Vamos, crianças (7) a crônica de Daniel Roy

Dorian não dorme. Seria porque Violette, recém-chegada ao mundo, ocupa o quarto dos pais? Seria porque a chegada da irmã em seu mundo provocou nele uma cólera legítima? Seria porque ela vem, talvez, ocupar um lugar deixado vago no desejo de seu pai e de sua mãe? É bem legítimo que a mãe de Dorian se faça essas perguntas e ao fazê-las pratica as primeiras interpretações que tentam alojar num discurso o acordar intempestivo de seu filho e sua grande agitação. Mas essas interpretações – sem dúvida alguma justas – não acalmam a criança, que apenas consegue se acalmar quando está só com sua mãe. 

Dorian não dorme. Seria porque ele acabou de retornar à escola dita maternal – aquela onde, dixit Lacan, procede-se a des-maternalização?

Seria porque, na escola maternal, «ele faz besteiras» com seu colega Félix e a professora lhe diz, «vá para o canto»? Entretanto, parece bom para Dorian ter um amigo com quem ir para o canto, e isso da professora lhe dar «um canto» para compartilhar com seu colega Félix, parece lhe agradar. Aqui, é a criança que fala e o que diz deixa ouvir que ela sabe encontrar lugares para se sentir apaziguada.
Ir para o canto não é uma sanção para ele, mas a marca de um interesse particularizado dessa senhora que se chama «mestra» e é com prazer que segue suas instruções - «todos os dias!», dirá sua mãe. Ele tem, portanto, outras soluções além da presença da mãe e elas não se excluem: Dorian é politeísta e nos faz ouvir que sabe reconhecer a presença das pequenas divindades alojadas em cada cruzamento significante.

Sigamos ainda seus passos no discurso, tal como se desdobra no encontro com seu analista. Por recomendação de sua mãe, ele me indica primeiro que tem medo «do eão grande», sintagma no qual não hesito em reconhecer sua interpretação pessoal do «leão grande»... Em seguida, reencontrando os objetos pequenos que deixou três meses atrás, separa dois: uma moto que não roda porque a roda está imobilizada pela areia; pequenas moedas que se esforça para fazer desaparecer na fenda da caixa de cartas, mas de dentro para fora.

Eis então Dorian com uma coisa que não funciona e outra coisa a mais, em excesso, que precisa fazer desaparecer. E dizem-lhe que ele não está certo de que «o eão grande» poderá tomar esse excesso a seu cargo, engolindo a criança e seus objetos. Há alguma coisa que prende. A «solução» fóbica não pode tudo! Há outras vias.

Então, levantemos aqui a hipótese de que interpretar esta criança é, primeiro, permitir-lhe permanecer o tempo que ela precisa nesta zona onde «o significante aparece como fenômeno elementar do sujeito»(1), fora do senso comum. Na verdade, eu não saberia separar o que Dorian quer dizer do que ele diz, separar o que ele quer fazer do que ele faz. Cabe a mim constatar essa eficácia do significante fora de qualquer «interpretação». Se eu não o faço, quem o fará?

Notas:
(1) J.-A. Miller, « L'interprétation à l'envers », La Cause freudienne, n°32, p.12. C'est dans cette même page que l'on trouve la matrice de la phrase qui suit : « Vous ne saurez jamais séparer ce que Joyce voulait dire de ce qu'il dit ».

«INTERPRETAR A CRIANÇA», este é o título da terceira Jornada do Institut de l'Enfant, que acontecerá em 21 de março de  2015 no Palácio de Congressos de Issy-les-Moulineaux. Em breve poder-se-á saber mais no blog http://jie2015.wordpress.com/.


Alison Bechdel, um "work in progress", por Estela Paskvan

Embora os dois livros de Alison Bechdel, Fun Home e C'est toi ma maman? (1) estejam separados por quase sete anos, constituem uma unidade como relato autobiográfico. Pertencem ao gênero chamado «romance gráfico» que produziu obras notáveis como Maus, de Art Spiegelman. Ambos os livros de Alison Bechdel são, por um lado, subtítulos para uma «tragicomédia familiar» e, por outro, «drama cômico», e é assim que ela qualifica seu romance familiar.

Não seria justo lê-los somente na perspectiva do gênero, nem tampouco torná-lo um objeto de psicanálise aplicada. Todavia, as duas abordagens são justificadas, porque Alison Bechdel se reconhece aí, ela mesma, mais que uma simples fonte de inspiração. Seu romance familiar responde à uma necessidade de elucidar seus enigmas subjetivos. Além disso, ela sabe «que com a ficção, atinge-se uma verdade mais profunda do que com os fatos»(2). Mas, finalmente, nenhuma das duas perspectivas nos serve para compreender sua singularidade.

Fun Home está centrado e fundado sobre sua infância e sobre a resolução de um segredo familiar: um pai homossexual que «não saiu do armário» e que acabou por se suicidar. Era professor de inglês, obcecado por decoração de interiores, e passava seu tempo livre a restaurar e a redecorar sua casa de estilo gótico. Mas também era herdeiro de uma empresa familiar de funerais, devendo se ocupar da «arrumação» dos cadáveres. A relação entre uma coisa e a outra se estabelece extremamente bem: «Esse véu do imaginário suspenso sobre a vida real era, afinal, a especialidade do meu pai».

Mas qual é o «arranjo» feito por Alison Bechdel com essas marcas? Uma obra original na qual a elaboração gráfica, a junção entre texto e imagem são particulares. Pode-se ver um vídeo no qual a autora explica isso. (3)

Tudo isso não constitui uma novidade para Alison Bechdel que, durante 25 anos (1983-2008) desenhou uma BD (bande dessinée – quadrinhos) muito famosa, por causa de seu papel no movimento lésbico norte-americano, intitulado Dykes to watch out for (Lesbiens à suivre  - na tradução francesa). Nesse romance gráfico, a distribuição espacial das imagens permite um tratamento singular das associações metonímicas. Em numerosos desenhos aparecem painéis sobrepostos que visam representar a coexistência temporária de diversos planos como na elaboração onírica. 

Segundo à autora, é uma «maneira psicanalítica do pensar». Esse privilégio concedido à metonímia, tem, em Alison Bechdel, toda a sua importância, e é preciso dizer também que o desenho oferece um enquadre ao deslizamento das associações que, de outra forma, poderia ser infinito. Referências literárias são alojadas nos painéis de cada vinheta e revelam também o lugar que elas ocupam na vida familiar. Não são banais de modo algum porque desempenham um papel, aquele de «formatar» essa vida. É o caso do pai. Alison Bechdel mantém o paralelismo que este fazia entre Scott Fitzgerald e o caminho de sua própria vida. Às vezes, a tragédia se torna cômica. «Parecia com Gatsby, ou pelo menos, com Robert Redford no filme de 1974». Seu gosto pela jardinagem e os arranjos florais nos levam ao jardim de Swann para concluir assim: «Se houve um pederasta maior que meu pai, foi Marcel Proust».

Seria errado deduzir que nos encontramos frente a uma garota irreverente. Muito pelo contrário. O livro começa com a imagem de um jogo acrobático de sua infância – Os Jogos de Ícaro – onde o pai mantinha «em equilíbrio perfeito» a filhinha que planava em cima dele. Mas, na mesma construção mitológica é o pai «que caiu de bico do céu». O livro termina com a mesma imagem, essa garota caindo na piscina «e ele estava ali para me agarrar». Um ponto importante é o sentimento de culpa ligado ao fato de que ela supôs que seu pai tinha se suicidado logo após a confissão da homossexualidade de sua filha. Sua conclusão é lúcida: confirmar que sua morte «não tinha qualquer relação comigo» implicava «uma renúncia a este elo último e frágil». (4)

Este primeiro livro foi publicado em 2006 e foi particularmente bem acolhido e premiado (5). Em 2012, surgiu «C´est toi ma maman»? Seria maniqueísta dizer que este trata de sua relação com a mãe, enquanto o anterior tratava do seu pai. Trata-se mais de um «work in progress» que é o próprio objeto, o material do livro. É fácil constatar que essa criação responde à uma necessidade subjetiva. Em um desenho, Alison, durante uma sessão de terapia, disse: « A questão é que eu não posso redigir o livro sem apagá-la da minha cabeça - sua mãe -, mas a única maneira de fazê-lo é redigir o livro! É um paradoxo.» (6) Felizmente, os terapeutas não impediram a realização de seu trabalho.

As referências literárias e psicanalíticas também estão presentes sob a forma de planos superpostos nas BD (bandes dessinées – quadrinhos) desse segundo livro. Há um fio tecido aí que atravessa a teoria de Donald Winnicott e partilha o espaço com Virgínia Woolf, onipresente. A relação entre a mãe e seu bebê, os objetos transicionais, «a mãe suficientemente boa», o caso Piggle e outros, mostram o resultado de uma pesquisa notável. As vezes o leitor não consegue parar de rir. Por exemplo, quando, durante a terapia, Alison diz que ela teria preferido Winnicott como mãe. Devo dizer que esse efeito cômico pode se produzir, apesar da intenção séria da argumentação.

É o efeito que a leitura do diálogo de Alison e sua mãe produziu em mim, dividindo o espaço com as teorias de Winnicott nos últimos desenhos (6). Não posso me impedir de citá-lo.

«Alison: Vou te fazer uma pergunta. Tu não podes refletir, é preciso dizer somente a primeira coisa que te passa pela cabeça.

Mamãe: Está bem.

A: Qual é a coisa mais importante que tu aprendeste de tua mãe?

M: Que os filhos são mais importantes que as filhas, disse ela sem problema.

A: Sério?

M: Ah, sim. Ela adorava Joe e Andrew (os irmãos mais velhos da mamãe).

(Parte superior do desenho) Winnicott fez uma conferência sobre o feminismo na Liga Progressista)

A: Mas... Mas tu veneravas John e Cristian também!  (irmãos de Alison)

(Parte superior) Certas coisas que se diz são típicas dessa época. «A inveja do pênis é um fato».

A: Se isso te deixou tão traumatizada como tua mãe o fez, para quê repeti-lo?

(Parte superior) Mas mais tarde Winnicott lembrou ao público que a inveja masculina a respeito do feminino é bem superior.

M: De jeito nenhum. Eu fui muito menos má do que ela.»
 
Os dois livros são fruto de uma elaboração subjetiva que revela honestidade e dignidade. Através de sua arte, Alison Bechdel teve sucesso com a produção de uma obra singular. É precisamente por este caráter «genial» que ela recebeu, muito recentemente, a bolsa da Fundação Mac Arthur. Esse prestigioso prêmio é dado àqueles que «mostram talentos excepcionais e dão prova de originalidade e de implicação em sua exploração criativa e de uma capacidade acentuada a progredir de maneira autônoma». Na verdade, o trabalho em andamento - «work in progress» -, continua.

Todas as referências procedem das edições e traduções espanholas da obra de Alison Bechdel.

 Notas:
(1)   Bechdel A., Fun Home, Reservoir Books, España, 6ème edition, 2013. Alison Bechdel, ¿Eres mi madre?, Reservoir Books, España, première édition, 2012
(2)   ¿Eres mi madre?, op. cit., p.29
(4)   Fun Home, op.cit., p.86
(5)    Sa traduction en Espagne a été vendue à 10.000 exemplaires - jusqu'à 2012
(6)    ¿Eres mi madre?, op. cit., p.23
(7)    Ibíd., op.cit., pp.263-264



Niki de Saint Phalle ou a guerreira ferida, por Marlène Belilos
Em 1971 Niki de Saint Phalle casa-se com o artista suíço Jean Tinguely. Seguem-se, então, 20 anos de companheirismo artístico, entre «Nanas» (garotas), serpentes e máquinas articuladas, das quais a mais conhecida é a Fonte Stravinsky na frente de Beaubourg. Elas foram apelidadas de «Bonnie e Clyde da Arte contemporânea» (1). Tinguely, parceiro da solução criativa de Niki, veio de um meio operário e de um país conservador. Ele desviará a precisão suíça por suas máquinas inúteis, e, depois, os «tiros» onde juntos se servem de fuzis para explodir os tubos de pintura, ato de Niki dirigido contra os homens, vai ajudá-la a finalizar suas esculturas monumentais cuja «Hon» é uma mulher cujo sexo serve de porta de entrada aos visitantes.

Ver a obra de Niki de Saint Phalle no Grand Palais (2), é uma festa de cores e formas desdobradas em três andares. Ler a obra de Niki de Saint Phalle é decifrar seu tom ousado de mulher, de menina ferida. Filha de uma das mais antigas famílias da nobreza francesa, Fal de Saint Phalle, construiu uma obra que responde ao traumatismo de um episódio doloroso, que ela contou de diversas maneiras, por ter sido, aos 11 anos de idade, entregue a um pai gozador. Ela vai «se salvar pela arte», dirá ela.

Assim, o filme Daddy (3), do qual apenas extratos são apresentados na exposição, foi realizado por Niki de Saint Phalle e pelo cineasta Peter Whitehead, em 1972.
Em Meu segredo, Niki escreveu: «Jean Tinguely, minha família e quase toda a imprensa ficaram indignados com esse filme, só a minha mãe, algumas críticas raras e Jacques Lacan, assumiram minha defesa» (4). Mas, ela havia proibido sua mãe de ver o filme.

Foram necessários 30 anos para Niki evocar o que ela considera como crime. Esse filme, forma de vingança e morte contra seu pai, realizado num cenário barroco e diabólico, está destinado a regular as contas com um pai, aristocrata e banqueiro, que, durante aquele verão de 1942, transgrediu as regras. Depois de uma lembrança de seus jogos ao ar livre de cobra-cega, blind-man, nas florestas da propriedade, oferece jovens ao pai amarrado a uma cadeira e termina por matá-lo.

Inverte os papéis, mas o filme não lhe traz conforto algum. Dessa história incestuosa, Niki não disse palavra. Que dizer, aliás, em um meio conservador, onde o silêncio mantinha o lugar da boa educação: «tem-se o direito de ser visto mas não escutado».

Com essa notícia, seu pai, tomado de remorsos, lhe envia uma carta em forma de confissão e de arrependimento. Ele morreu de uma crise cardíaca em 1962, sem que tivessem tido acesso a uma explicação.

Porém, é seu corpo que fala e seus problemas sintomáticos a conduzem à psiquiatria com a idade de 22 anos, onde é submetida a dez sessões de eletrochoque.

Em tratamento com um psiquiatra, o Dr. Cossa, encontra um médico que lhe sugere esquecer isso que só era, dizia ele, «fantasia». Insistia na leitura da carta de arrependimento do pai, incitando-a, ainda, a não revelar tais horrores!

A teoria da fantasia de Freud foi usada, muitas vezes, em socorro dessa negação da realidade.

Niki esperou mais 20 anos, para escrever, em 1992, um livro intitulado simplesmente Meu segredo, que dedica à sua filha Laura. Ela é a melhor intérprete do que se passou, dizendo ao mesmo tempo do horror e da vergonha, do seu combate entre o amor por seu pai e a vergonha de que se ressentia. Ela exprime a dificuldade de sair disso sozinha, a necessidade da lei, mas também o benefício que ela usufruiu desse isolamento que lhe permitiu criar. 

Sua mãe veio em seu socorro para lhe dizer que ela tinha tido conhecimento da carta do psiquiatra e que tinha feito seu marido falar, compadecendo-se com a causa de sua filha : « Se meu pai tivesse me feito isso, eu não teria jamais lhe dirigido a palavra ». (5)

Sua obra apresentada no Grand Palais testemunha tudo isso num clima de alegria e tristeza.

 Notas:
(1) Cf sur YouTube Niki de Saint Phalle & Jean Tinguely, Les Bonnie & Clyde de l'Art, un film de Louise Faure et Anne Julien, https: // www.youtube.com/watch?v=3y-I-KpxiG8
(2) Niki de Saint Phalle, du 17 Septembre 2014 au 2 Février 2015 - Grand Palais, Paris http://www.grandpalais.fr/fr/evenement/niki-de-saint-phalle
(3) Daddy, sur YouTube, version complète - https://www.youtube.com/watch?v=Sx5eCjIVYFk
(4) Saint Phalle (de) N., Mon secret, Éditions La Différence, Paris, 2010
(5) Saint Phalle (de) N., Mon secret, op. cit.


Tradução: Cláudia Aldigheri Rodrigues

Comunicação: Maria Cristina Maia Fernandes.


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