5 de março de 2014

LACAN COTIDIANO N. 380 - PORTUGUÊS‏

No 380
Eu não teria perdido um Seminário por nada no mundo—PHILIPPE SOLLERS
Nós ganharemos porque não temos outra escolha —AGNÈS AFLALO
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«Mulheres de letras – a experiência do ser e a escrita de um corpo»por Emmanuelle Borgnis-Desbordes
Diante da amarração do ser à letra algumas mulheres não recuam, algumas por escolha, outras por necessidade. Em Rennes 2, nos próximos dias 27 e 28 de março, nós estudaremos o que pode fazer função de  litoral ao inefável gozo que às vezes toma toda a subjetividade em sua passagem. Jacques Aubert vai retornar nessa ocasião à lição de Joyce, que soube fazer limite ao seu gozo e como um tratamento pela letra pode participar para lhe dar um corpo e uma posição de existência. Que função a escrita pôde ter para Joyce? Que função a escrita pôde ter para as místicas, que, na maioria, deixaram escritos? Que função a escrita pôde ter nessas mulheres de outro século (Virginia Woolf, Djuna Barnes, Emily Brontë, Marina Tsvetaeva, Sylvia Plath, Ingeborg Bachmann…), ou naquelas do século passado (Duras, George Sand, Colette, Sagan, Beauvoir, Kristeva…) mas também nas do nosso século (Nothomb, Darieussecq, Angot, Millet, Rheims, Despentes…). Todas tratam da mesma coisa, elas tão «não-todas»?
Pinçar o que para cada um fez acontecimento, « acontecimento de discurso» e tratamento, nos ensina sobre a inconsistência do ser, o tratamento pela letra e a clínica da ausência. A orientação de Jacques Lacan e de Jacques-Alain Miller permite avançar no campo abissal desse gozo que muitas vezes pena em encontrar limite.

« A história da minha vida não existe. Isso não existe. Nunca há centro. Nada de caminho, nada de linha. Há vastos lugares nos quais se faz crer que houvesse alguém, não é verdade que não houvesse ninguém» (1). Duras não parou de dizer e, sobretudo, de escrever suas Barragens, seus alicerces contra um Pacífico ameaçador, metáfora de uma proximidade com uma imensidão perigosa, imprevisível e devastadora. A escrita, para ela, funciona como presença e como limite. Aí onde as palavras faltam para dizer o ser de uma mulher, a escrita inscreve a ausência na presença de ser: « Sei que quando escrevo, há algo que, possivelmente, procede da feminilidade... é como se eu retornasse para um terreno selvagem » (2). Em 1972, Lacan avança que « A mulher não existe », que não há significante para dizê-la. «  A mulher não existe não significa que o lugar da mulher não existe, mas que esse lugar permanece essencialmente vazio. Que esse lugar permaneça vazio não impede que se possa encontrar aí alguma coisa » (3). Por força de querer se identificar com a ausência que o atravessa, o sujeito em posição feminina pode se abandonar a si mesmo e se deixar perder. A escrita funciona como barreira e como tratamento, uma escrita que terá permitido a Duras não fugir definitivamente e encontrar um litoral para o abismo que ela podia encontrar. Pascal Quignard evoca magnificamente em seus romances esses abismos ordinários. Ann Hidenn (4) a heroína de Villa  


Amalia largou as amarras, fugiu, mas ela retornou dessa experiência; Claire, por outro lado, a heroína de Solidarités mystérieuses adorou se perder e acabou por se perder, nas moitas, na beira das falésias, despida de todos os ouropéis, confundida com a própria natureza (5). Em sua Homenagem a Marguerite Duras (6), Lacan avança que uma mulher deve estar avisada de que não há nenhuma relação entre os traços do sulcamento produzido pela linguagem e a devastação sem rosto que supõe o fato de que seu gozo escapa às palavras, seja porque ela percebe que como Outro ela não tem mais alma do que ser, e que se ela pode amar seu arrebatamento, ela não tem por isso que encontrar aí um rosto, uma identificação. Ao querer dar um limite ao vazio ilimitado com o qual ela tem relação, ao « arrebatá-lo (ravir) » numa figura, num rosto do amor, por exemplo, a mulher busca conjugar dois gozos que, no entanto, não podem se unir - (a) e  – «as núpcias taciturnas da vida vazia com o objeto indescritível» (7). Claire amou essa confusão até o aniquilamento subjetivo (8).
Se a feminilidade se determina a partir do Outro, o feminino se determina a partir do ser. E existe de fato um modo de ser aí propriamente feminino, uma « posição feminina do ser» (9) que marca esse desdobramento que Freud já havia indicado, e que Lacan destaca, entre um gozo fálico e um gozo para além. Esse gozo pode empurrar para a errância porque o significante não é suficiente para limitá-lo; por outro lado, esse gozo que alguns sujeitos experimentam, mesmo que eles não saibam, pode ser cernido pela escrita e finalmente se tratar pela letra: « Escrevi para sobreviver », dizia Pascal Quignard, para não se deixar precipitar nessa hiância, que é a hiância do Outro como tal, um Outro que é Outro para si mesmo, o Outro que falta (10). Se ele não encontra um « semblante » para se dizer e se inscrever, esse gozo pode tomar a forma do Um e devastar o sujeito. Se os místicos eram possuídos pelo amor, eles também eram formidáveis escritores, encontrando através da escrita o litoral que poderia limitá-los. Para Quignard, a escrita funciona como sinthoma permitindo ao sujeito « se aliviar do peso dos discursos dominantes, das palavras para não dizer nada, todas as suas palavras que dizem em abundancia e que [finalmente] não dizem nada do ser » (11). Ela permite ao sujeito não se deixar ser totalmente levado já que ela convoca mais e ainda maisaquilo que é a parte mais íntima do sujeito, seu ser. « A escrita [dizia Duras] tomou a frente… ela ia mais rápido que eu... O Amante [mais que qualquer outra obra] traduziu o prazer que eu tive 10 horas por dia em escrever… ». Para além de toda significância, os escritores nos abrem a via do ser, aí onde a lalíngua deixou traço.
Nosso colóquio internacional se fará testemunha das montagens singulares e não menos originais de cada um para fazer com essa lalíngua que faz traço e dá corpo ao ser do sujeito.

Informações sobre o colóquio :

(1)   Propos de Marguerite Duras en 1963, in Adler L., Marguerite Duras, Paris, Gallimard, 1998, p.16
(2)   Ibid.
(3)   Miller J.-A., « Des semblants dans la relation entre les sexes »La cause freudienne, n° 36, Paris, Navarin-Seuil, mai 1997, p.5.
(4)   Quignard P., Villa Amalia, Paris, Gallimard, NRF, 2006.
(5)   Quignard P., Solidarités mystérieuses, Paris, Gallimard, NRF, 2011.
(6)   Lacan J., (1965) « Hommage fait à Marguerite Duras, du ravissement de Lol V. Stein », Écrits, Paris, Seuil, 1966, p.197.
(7)   Ibid,
(8)   Quignard P., Solidarités mystérieusesop. cit.
(9)   Laurent É., (1993) « Positions féminines de l’être », La Cause freudienne, n° 24L’Autre sexe, Navarin-Seuil.
(10)      Miller J.-A.,  « La fuite du sens », leçon du 21/02/1996 (inédit).
(11)      Propos de P. Quignard, in Pautrot J.L., Paris, Gallimard-Grasset/Institut français, 2013.

Quando o véu não é erguido  por Dominique Heiselbec


A propósito dos filmes Le vent se lève (Vidas ao vento) de Hayao Miyazaki e Ida de Pawel Pawlikowski : nada querer saber do real em dois filmes recentes.

Le vent se lève (Vidas ao vento)



O vento erguia-se de fato para fazer voar as sombrinhas das mulheres e os belos aviões de Miyazaki. Aviões cheios de sonhos! A frase do poeta Paul Valéry, « ergue-se o vento, há que tentar viver », pontuava felizmente o percurso inspirado do herói apaixonado por aeronáutica que nos pintava o desenhista genial. No fundo, que seja preciso tentar viver, apesar da miséria, da doença, da morte, da guerra, sem dúvida. A nota nostálgica com a qual o filme se conclui - o « Eles não voltarão», endereçada por seu criador aos pares aviões-pilotos dos « famosos aviões Zero », como escreve Télérama sem lembrar porque eles eram « famosos » (crítica de 22 de janeiro de 2014)-, esclarece, no entanto, o filme de um dia que não é poético. Porque o avião « Zero » existiu, inventado pelo engenheiro Jiro Hirikoshi no qual Miyazaki se inspirou, conservando seu nome para o herói do filme. Esses aviões efetivamente não voltavam e, com razão, já que eles eram pilotados por kamikazes que se faziam explodir com… no tempo em que o Japão era aliado de Hitler ! Do real da morte, ligando esses aviões a seus pilotos, nenhuma palavra, mas um deslizamento em direção a outras imagens de sonho com as quais o filme termina.
A bela forma, o bem dizer, que nos atraem tanto e nos satisfazem, eludem a evocação da colaboração do Japão com um regime que semeou o horror na Europa e foi uma vergonha para a humanidade, acreditava-se. Esse silêncio, essa ausência de crítica e, enfim, essa indiferença com os quais Miyazaki conclui uma obra, no entanto, torna-se ainda mais pesado com o acréscimo vindo da história criminal do século 20. Pois se é preciso tentar viver, é no sentido de se fazer responsável por seus atos e não de se ausentar deles.

Ida



Com Ida, a estética do preto e branco é levada à perfeição. Vejamos ao que ela serve. A heroína que usa o véu, com uma ingenuidade inteiramente « bressoniana », encarna uma jovem freira, filha do convento onde foi criada, que no momento de fazer seus votos, na Polônia dos anos 60, fica sabendo que nasceu judia, de pais judeus, mortos durante a guerra. Fica sabendo disso através de uma mulher que ela não conhecia, sua tia materna, na qual ela vai encontrar um estilo de vida, inteiramente oposto ao seu : ela fuma, ela bebe, ela dorme. Essa mulher é também profissionalmente e politicamente engajada: ela é « a juíza vermelha » no seio do regime comunista no poder. Ela é igualmente uma mulher que fala e que não masca suas palavras. O road movie das duas personagens no campo polonês durante o inverno, lúgubre a não poder mais, não deixa de ter sal. É o que dirá o belo caroneiro à jovem: «Vocês dois formam um casal estranho». No final do filme, a jovem voltará ao convento: ela escolhe as ordens. Por que não? Uma freira que se descobre judia, que encontra o mundo profano sob os traços da outra mulher e que opta pelo gozo do claustro. Tudo muito bem filmado, austero na medida certa, preto e branco sutil, enquadramentos estudados, plano bem cuidado. É de fato um belo filme.
A não ser pelos significantes «judeus», «camponeses poloneses», «floresta polonesa», «igreja da Polônia», «assassinato de crianças judias», bem presentes no famoso périplo das duas mulheres, que são infiltrados pelo real do horror dos crimes perpetuados contra os judeus na Polônia. Na Polônia, mais que em qualquer outro lugar. Mas essa freira visivelmente não escutou falar de Auschwitz, o que faz também parte de sua virgindade. O filme poderia explorar esse paradoxo da freira que se descobre judia. Não apenas judia, mas judia polonesa no final dos anos 50. Ora, nada de choque, nada de ruptura na cadeia discursiva no trajeto que a personagem principal nos faz seguir (não é a mesma coisa com a tia, mas justamente, não é sobre ela que o filme se centra). Assim, depois de ter enterrado os restos de seus pais e dormido com um rapaz, a freira arruma tudo sob seu véu e volta para o convento. Como se não fosse nada, como se ela não fosse concernida! Nesse filme o real é convocado, depois deixado de lado. Libération, que
consagrou o lugar central de seu « Caderno cinema » ao filme (12 de fevereiro de 2014) escreve: « Um relato de uma doçura que nos trespassa». Acrescentemos que essa doçura tem algo de congelante: ela convida a deslizar, como a heroína, levada pela beleza das imagens. O véu da beleza sobre o real do horror nos deixa um gosto amargo. O esteticismo do filme suaviza o real. Uma pena. Seria uma vontade do diretor de mostrar alguma coisa do real no século 21, esse real velado, ou seria sua postura subjetiva de suavizá-lo?



A contra-psicanálise contra as TCCpor Marco Mauas
Um artigo recente publicado pelo American Journal of Psychiatry1 assegura ter podido comparar a eficácia do tratamento psicanalítico com a terapia cognitivo-comportamental em casos de bulimia, e ter constatado a nítida superioridade das TCC na melhora dos sintomas. Os autores são, para a surpresa do jornal que dedica seu editorial unicamente a esse assunto, dois psicanalistas experientes2. No estudo, comparou-se o resultado randomizado de 20 seções de TCC com dois anos de psicanálise em 70 pacientes, no ritmo de uma seção por semana. Apesar da vantagem em número de seções e de tempo da psicanálise sobre as TCC, depois de 5 meses de tratamento, 42% dos pacientes tratados com TCC tinham parado de comer sem limite e apenas 6% dos pacientes tratados pela psicanálise mostravam um resultado similar. Mesmo depois de dois anos, apesar de que a porcentagem seja de 15%, estava-se ainda muito longe do sucesso notável das TCC, 44%, 19 meses depois do fim do tratamento. Um sucesso verdadeiramente extraordinário. Bravo para as TCC!
Stig Poulsen e Susanne Lunn, os analistas e diretores da pesquisa, são, dizem, muito experientes e eles próprios participaram do estudo. O editorial do American Journal of Psychiatry é muito elogioso, e saúda a aparição do primeiro exemplo que permite concluir pela superioridade de um «evidence-based treatement» como a TCC no tratamento da bulimia.

Aplicar uma contra-psicanálise contra a falsa ciência
Cada vez que um psicanalista se presta a medir sua prática, ele dá preferência ao simbólico. O estudo que acabo de mencionar constata também os resultados da psicoterapia psicanalítica («both treatments had substantial effects on global eating disorder psychopathology and general psychopathology»), mas o editorial sublinha com pertinência que não se quis entrar em detalhes sobre os efeitos de causalidade específicos «on the long term». É um dos «minor methodological points», segundo o jornal.
Ora, esse «ponto metodológico menor» é precisamente o que invalida a comparação. 
Poderíamos refletir um pouquinho sobre um caso de Jacques Lacan que parece ser bem distante de sua própria abordagem posterior, no momento em que seu esforço de clarificação, até mesmo de salubridade, tal como Jacques-Alain Miller diz em seu curso de 9 de maio de 20073, o levava a nos alertar sobre a questão da preferência a se dar ao simbólico. J.-A. Miller acrescenta que « o que restaria seria uma espécie de poesia que operaria uma relação direta do significante com o corpo ».
O caso que eu quero comentar está, é claro, muito distante dessa « crueldade » do Lacan do ultimíssimo ensino, mas já que a psicanálise é mencionada, utilizada e concernida, vale a pena comentá-lo, porque ele pode trazer uma luzinha a essas pretensas pesquisas evidence-based. Eu quero falar do caso do obsessivo comentado por Lacan em «A direção do tratamento e os princípios de seu poder»4. Em particular, da maneira particular com a qual Lacan apresenta uma virada no tratamento deste analisante.
Primeiramente, podemos observar que, ainda que Lacan esteja num período de otimismo analítico, como sublinha J.-A. Miller, o título desse texto, «A direção do tratamento…» evoca um caveat, para utilizar um termo que figura igualmente no editorial mencionado.
O caso deste analisante é bem conhecido, ele foi comentado inúmeras vezes e não é exagerado dizer que cada comentário traz uma nova varidade do caso.
Este analisante está «no final da análise»5, e Lacan descreve um «incidente». Antes de descrever esse incidente, Lacan transmite o que ele chama de «o labirinto» assim como as mudanças que «não faltam nessa neurose obsessiva». Trata-se de um longo trabalho. O sujeito pôde constatar sua dificuldade em desejar sem destruir o Outro e dessa maneira o próprio desejo. A descrição de Lacan é muito minuciosa. Eu irei diretamente ao incidente, que Lacan qualifica de «rodada de bonneteau muito especial». O sujeito é «impotente com a amante e, pensando em se valer de suas descobertas sobre a função do terceiro potencial no casal, propõe-lhe que ela durma com outro homem, para ver no que dá »6.
Antes de destacar a resposta da amante, Lacan sublinha que a análise lhe diz respeito, « pelo acordo que sem dúvida ela fez há muito tempo com os desejos do paciente, porém, mais ainda, com os postulados inconscientes que eles sustentam ». Comentário estranho. A análise lhe diz respeito, não em razão dos efeitos terapêuticos, mas em razão de um acordo com os postulados inconscientes do analisante. Eu chegaria a dizer que esse « ser concernida, lhe dizer respeito » é de natureza a colocar o simbólico sob suspeita. Se há um efeito sobre a amante, não é um efeito que se poderia descrever dando apenas preferência ao simbólico. O que quer dizer Lacan com essa formulação segundo a qual ela realiza um acordo com os desejos de seu amante? Se se quisesse levar as coisas ao extremo, poder-se-ia colocar a questão do limite que o acordo de uma mulher pode atingir com seu homem. Vejam o caso de Hannah Arendt com Heidegger. Ela situou seu acordo próprio nesse caso, sem dúvida. Eu quero dizer que há um « acordo » que toca a própria vida, o gozo da vida dos seres falantes enquanto que falantes. Mas deixemos isso de lado.
A amante do analisante responde com um sonho– que se tornou célebre –, sonho que ela lhe conta. Eu cito: « Ela tem um falo e sente-lhe a forma sob suas roupas, o que não a impede de ter também uma vagina e, acima de tudo, de desejar que esse falo a penetre. » O efeito do relato do sonho de sua amante sobre o analisante é fulgurante. Ele « recupera no ato seus recursos e o demonstra brilhantemente à sua sagaz companheira». A questão colocada por Lacan é: «Que interpretação se indica aqui? ». Trata-se do efeito do sonho sobre o paciente, e não de analisar o sonho, já que esse sonho « dirige-se tão bem a ele quanto o poderia fazer o analista». Ousaríamos dizer que ele o faz até mesmo um pouquinho melhor?
O paciente, diz Lacan, mantém seu desejo, como bom obsessivo, em um impossível. Ele faz em suas escolhas « um jogo de evasão ». E a análise? A análise « desarranja » esse jogo. Mas e ela, a amante? Ela « (…) aqui restaura por uma astúcia ».
Se a amante restaurou o que a análise perturbou, não creio forçar muito as coisas dizendo que ela está situada numa posição de contra-análise. E ainda mais, se essa hipótese é sustentável, poder-se-ia colocar a contra-análise da amante como condição de possibilidade da análise que continua, quer dizer « a função de significante que o falo tem em seu desejo ».
tertium comparationis: o gozo, estranha satisfação
Nenhuma conclusão sobre o resultado de uma psicanálise é válido se não se recorre ao que chamo, com Lacan, aqui, de contra-psicanálise: não é o julgamento do terapeuta analista que vale, nem mesmo o testemunho do paciente, mas algo que, envolvendo os dois, os transporta juntos ali onde seria possível ler os resultados, considerando as causalidades « on the long term ». No caso do analisante de Lacan, o que está em questão? Não um sonho, mas o sonho que sua amante lhe conta. O resultado deve ser lido, segundo Lacan, nos efeitos desse incidente: [sonho contado a seu amante + seus efeitos]  =  x. Como é que Lacan lê esse x ?
Ele enuncia isso da seguinte maneira: « Aqui, é única a oportunidade para mostrar a figura que enunciamos nestes termos: que o desejo inconsciente é o desejo do Outro – uma vez que o sonho é feito para satisfazer o desejo do paciente para-além de sua demanda, como é sugerido pelo fato de ele ter sucesso ».
A bulimia e sua satisfação excêntrica
Onde encontrar o equivalente a respeito da bulimia que está no centro da « pesquisa » comparativa? Pois bem, eu diria que ele deve ser situado em um fenômeno que não é de forma alguma negligenciado pelos terapeutas dos casos de bulimia e de adições, sobretudo quando eles prestam um pouquinho mais de atenção àquilo que seus pacientes lhes dizem. Em inglês, chama-se isso por um lindo nome, que vai talvez trazer alguma luz à questão da contra-análise. Trata-se dos relapse dreams. Depois de um tratamento bem sucedido, pode-se observar a aparição de sonhos onde o sintoma expulso reaparece. No siteEatingDisordersOnline, nos informam sobre essa questão da seguinte maneira: « Relapse dreams are a great way to remind an eating disorder addict that the vulnerability to relapse is still with them, even years and decades later, but the primary service to health and wholeness that this type of nightmare provides is to keep the conscious emotional and intellectual awareness vividly alive. »7 
É o retorno dessa estranha satisfação num pesadelo que lembra que o que parecia morto está, na verdade, vivo. Porque não dizer que, no caso descrito por Lacan, o sonho da amante é um relaps daquilo que foi  « perturbado » pela análise ? « Eis teu desejo, tão adito, de ser o falo que retorna, eu o dou a ti, mesmo satisfeita ».  É a ex-centricidade da satisfação, extorquida de seu ser, que opera aqui permitindo ao paciente recuperar o uso do órgão, e também permitindo à análise isolar seu significante .
Nada de estudos comparativos com a psicanálise sem o relaps da contra-análise
A validade do estudo publicado no American Journal of Psychiatry é limitada ao simbólico, nas duas séries de casos. A contra-psicanálise isola o significante a partir do relaps e não a partir da melhora.


 « A Randomized Controlled Trial of Psychoanalytic Psychotherapy or Cognitive-Behavior Therapy for Bulimia Nervosa », Stig Poyulsen, PH D, Susanne Lunn, et al. Am. J. Psychiatry, 2014; 171: 109-116, cité par Daniel Freeman, “Are all psychological therapies equally effective? Don’t ask the dodo”, The Guardian, 23 January 2014 (Accessible sur le net).
2 Steven D. Hollon, Ph.D. G. Terence Wilson, Ph.D. Psychoanalysis or Cognitive-Behavioral Therapy for Bulimia Nervosa: the Specificity of Psychological Treatments, PsychiatryOnline, American Journal of Psychiatry January 01, 2014 of Psychological Treatments (disponible sur journals.psychiatryonline.org)
3 Miller J.-A.,  « El ultimísimo Lacan », (2006-2007), 9 mai 2007, p. 210.
4 Lacan J., « La direction de la cure et les principes de son pouvoir – Rapport du colloque de Royaumont 10-13 juillet 1958 », Écrits, Paris, Seuil, 1966, p.585.
5 Ibid., p.630. Toutes les citations et formulations de Lacan qui suivent dans le texte sont à retrouver pages 630 à 632.
6 Ibid., p.631.

Os autistas submetidos à pulseira eletrônica 
A revista US, United symptoms,    
de Jean-Charles Troadec


«Os sintomas na civilização devem ser decifrados primeiramente nos Estados Unidos».
Eric Laurent e Jacques-Alain Miller, O Outro que não existe e seus comitês de ética


No dia seguinte do funeral de Avonte Oquendo, criança autista encontrada morta no final de janeiro de 2014 com 14 anos, depois de ter fugido de sua escola em outubro de 2013, o senador americano Charles E. Schumer do estado de Nova Iorque, acompanhado da mãe e da avó do defunto, propôs no domingo, 26 de janeiro de 2014, uma « lei Avonte » a favor da colocação de um dispositivo eletrônico de alarme para as crianças que sofrem de autismo. Três dias mais tarde, o texto foi adotado.
O princípio é o mesmo daquele para os sujeitos com Alzheimer, a saber, a colocação de uma pulseira que permite dar o alerta de uma fuga fora de um perímetro delimitado: casa, escola, instituição.

É frequente, com efeito, que os autistas fujam dos lugares barulhentos ou cheios de gente quando isso se torna muito insuportável. « A fuga de Avonte não é um caso isolado», dizia o senador quando da entrevista coletiva à imprensa em seu escritório no East Side de Manhattan. O porta-voz de Autism Speak, presente naquele dia, testemunhava, com efeito, que seu filho autista de 26 anos, presente ao seu lado, também tinha como hábito, quando criança, fugir para se refugiar nos telhados das casas2.
Suas proposições fazem eco ao filme de Lasse Hallström, Gilbert Grape, que coloca em cena uma criança que sofre de umdéficit mental, Arnie (Leonardo Di Caprio), e seu irmão mais velho, Gilbert (Johnny Depp), que passa seus dias impedindo seu irmão menor de subir nos reservatórios de água da cidade.


Assim, todo mundo se põe de acordo sobre a periculosidade das fugas. Mais do que refletir em como inventar um lugar pacificado para os autistas, que não os leve a fugir, privilegia-se – uma vez não é hábito…, o método duro: eles serão impedidos de fugir. A fuga, como modo de defesa, não é reconhecida enquanto tal. É um comportamento desviante, segundo a abordagem comportamental dominante nos USA. O dicionário Littré descreve o verbo fugir como: «subtrair-se apressadamente de um perigo, de uma ameaça, de qualquer coisa ou de qualquer um»1.
Se a fuga é tão frequentemente escolhida pelos autistas, é porque há certamente alguma coisa que eles tentam tratar dessa maneira. Ele ganha estatuto de sintoma e não de comportamento desviante.

Os problemas que os autistas encontram na escola

O ideal de inclusão social e escolar dos autistas, frequentemente desejado pelos pais e pelas associações, encontra aqui seus limites. As escolas aparecem muito frequentemente como ameaçadoras para os sujeitos autistas: gente demais, falta de lugar para se esconder e, pior, a experiência mostra que é finalmente um lugar hostil onde reina a brutalidade das crianças. Um estudo americano publicado pelos Archives of Pediatrics and Adolescents Medicine em 2012 alertava sobre as sevícias e a gozações que os sujeitos autistas sofrem na escola. « A taxa de sevícias e de represálias em relação a esses adolecentes é alarmante »3, escreve o professor Paul R. Sterzing, responsável pelo estudo. As crianças autistas com suas bizarrices e seus rituais se expõem às violências de seus colegas: 46% dos autistas escolarizados sofrem cotidianamente de ataques de todo tipo. Por comparação, na população geral, 10% das crianças sofreram bullying de seus colegas de sala. O estudo se baseia em 11000 casos de alunos durante 11 anos entre 2001 e 20124. As sevícias chegam, às vezes, longe: as crianças roubam seus livros ou abaixam suas calças no pátio de recreio. Ora, perturbar os rituais de uma criança autista pelo roubo de livro pode ser um real desastre subjetivo. E quanto a expô-la aos olhos de todos, com as calças abaixadas...

Em 2006, Autisme sans frontière, em seu artigo intitulado « Estudo sobre a integração escolar das crianças autistas na França», visava diretamente a psicanálise como responsável pela baixa taxa de autistas escolarizados em nosso território: « A comparação com outros países europeus permite assim constatar que a importância dos hospitais-dia, do ponto de vista institucional, e da psicanálise do ponto de vista das terapias escolhidas, constituem freios à escolarização das crianças autistas na França (…). É, com efeito, pouco admitido na França que a escolarização de crianças autistas em escolas comuns possa ser bem sucedida».5  E por isso.

Mesmo que nada na teoria psicanalítica vá de encontro com a escolarização das crianças autistas (aliás, Autisme sans frontière não apoia sua alegação contra a psicanálise), o recente estudo americano permite relativizar o direito à escolarização para todas as crianças que sofrem de autismo, colocado como um ideal. Os autistas não testemunham, como Josef Schovannec recentemente em seu livro, que a escola e toda forma de normalização sejam sobretudo um freio à expressão da singularidade da qual os autistas dão prova para encontrar seu lugar nesse mundo e para aceder às aprendizagens?

O que é que eles vão ressentir diante da intrusão dessa pulseira colada a seus corpos, vindo do outro, da qual é impossível se desfazer? Temos que temer os progressos técnicos de vigilância que se difundem a toda velocidade no século 21. Que limite encontrará o laço social diante da democratização dos drones, dos Google Glass e de outras latusas que aparelham os corpos, sem a linguagem, a qual não se tecnicisa? Se o sujeito autista não pode retirar essa pulseira, ele poderá sempre se recusar a falar.


1. Le petit Littré, Le Livre de Poche, 1990
2Maslin NirS., « Schumer Proposes ‘Avonte’s Law’ to Protect Children With Autism », in The New York Times, Jan. 26, 2014, disponible sur internet :http://www.nytimes.com/2014/01/27/nyregion/schumer-proposes-avontes-law-to-protect-children-with-autism.html?_r=0
3. Sterzic P. et al., « Bullying Involvement and Autism Spectrum Disorders Prevalence and Correlates of Bullying Involvement Among Adolescents With an Autism Spectrum Disorder », Nov. 2012, disponible sur internet : http://archpedi.jamanetwork.com/article.aspx?articleid=1355390&resultClick=3
4. O’Connor A., « School Bullies Prey on Children With Autism », The New York Times, Sept. 3, 2012, disponible sur internet : http://well.blogs.nytimes.com/2012/09/03/school-bullies-prey-on-children-with-autism/
5. Beauguitte, A., « Etude sur l’intégration scolaire des enfants autistes en France », Autisme sans frontière, mai 2006, disponible sur internet. 
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Pela rubrica Critique de Livres, queiram endereçar suas obras,para NAVARIN ÉDITEUR, la Rédaction de Lacan Quotidien – 1 rue Huysmans 75006 Paris. 
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Tradução: Cristina Drummond
Comunicação: Maria Cristina Maia Fernandez


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