Nosso dever não é apenas vituperar essa caricatura da verdadeira
ciência; é adivinhar os efeitos do desaparecimento das nosologias
“clássicas”
Evocar os efeitos do mercado
farmacêutico não é nem se afligir nem se alegrar. A prescrição das moléculas
que agem sobre o humor e o pensamento prevaleceu sobre a “independência”
epistemológica da psiquiatria. É assim: não se voltará atrás; a medicina geral
apoderar-se-á cada vez mais das práticas terapêuticas, e a neurologia redobrará
sua pretensão de aí imiscuir-se. As consequências serão duplas: simplismo
crescente de um lado, com seu cortejo de ingenuidades psicológicas
constrangedoras; abstração extravagante do outro, traduzindo a mania cada dia
mais afirmada de só se considerar a biologia cerebral.
Nosso dever não é apenas
vituperar essa caricatura da verdadeira ciência. É adivinhar os efeitos do
desaparecimento das nosologias “clássicas”. Ponto pacífico: essas
classificações eram criticáveis e seu naufrágio não pode ser infinitamente
chorado.
Contudo, as teorias que
acompanhavam as semiologias reunidas pela psiquiatria, a chamada
“psicopatologia”, diziam os desejos em jogo naquilo que era examinado. O sonho
das novas clínicas é alcançar uma observação sem observador. Ambição que o
doutor Lacan certamente teria qualificado de “não-tola”. As recomendações de
multiplicar os diagnósticos, de se enviar mutuamente os “itens”, indicam que
não se trata de oferecer um ponto de vista original, mas de obter uma
“fidelidade inter-juízes”. O importante não é o verdadeiro ou o falso, mas que
a identidade das constatações desemboque em coincidências codificadas. Essa
posição é insensata.
Claude Bernard lembrava que a
ciência começa com a hipótese, quer dizer com o engajamento desejante do
pesquisador. O “ateorismo” atual em nada lembra os ideais da ciência sem os
quais a psicanálise não teria sido inventada.
Aliás, o problema dessas novas
classificações não é tanto apagar a diferença entre a neurose e a psicose, mas ignorar
a histeria e a paranoia, que são duas modalidades essenciais da relação do
sujeito com o saber: a do desafio que semeia a dúvida em nome da verdade; e a
da desconfiança que denuncia o lucro e a parcialidade, escondidos por trás do
pretexto do conhecimento.
Assim, podemos apostar que esses novos saberes inspirados
nesse “ateorismo” serão acolhidos seja com o riso zombeteiro que vai assinalar
seu ridículo, seja com a hostilidade que estigmatizará sua ilegitimidade.
Tradução de Alain Mouzat
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