18 de fevereiro de 2014

LACAN COTIDIANO N. 371 - PORTUGUÊS‏

Domingo, 26 de janeiro de 2014 - 09h00 [GMT + 1]    
NO 371
Eu não teria faltado ao Seminário por nada no mundo — Philippe Sollers
Ganharemos porque não temos outra escolha — AgnÈs Aflalo

O racismo 2.0
por Éric Laurent

Os recentes debates que têm lugar em torno da proibição do espetáculo de Dieudonné, fazem ressoar de maneira muito atual uma das «antecipações lacanianas»1 sobre a função da psicanálise na civilização. As últimas palavras do Seminário 19, em junho de 1972, visam precisamente nosso futuro. A saída da civilização patriarcal lhe parecia então consumada. A época pós-68 ainda fervilhava de proposições sobre o fim do poder dos pais e a chegada de uma sociedade dos irmãos, acompanhada do hedonismo feliz de uma nova religião do corpo. Lacan atrapalha um pouco a festa acrescentando uma consequência que havia passado desapercebida: «Quando voltamos à raiz do corpo, se revalorizarmos a palavra irmão, (…), saibam que o que vem aumentando, o que ainda não viu suas últimas consequências e que, por sua vez, se enraíza no corpo, na fraternidade do corpo, é o racismo». A idolatria do corpo tem consequências bem diferentes do que o hedonismo narcísico o qual alguns poderiam pensar limitar essa «religião do corpo». Elas anunciam na modernidade outras figuras da religião diferentes das religiões seculares, como dizia Raymond Aron, que caracterizavam a época e forneciam, segundo ele, «O Ópio dos Intelectuais».

No mesmo momento em que Lacan previa o aumento do racismo, sublinhado com insistência de 1967 aos anos 1970, o ambiente era mais de regozijo diante das perspectivas de integração das nações em conjuntos mais amplos que autorizavam os «mercados comuns». Todo mundo era então, mais do que hoje, a favor da Europa. E Lacan acentua essa consequência inesperada com uma precisão que, na época, surpreendeu. Interrogando Lacan em «Televisão», em 1973, Jacques-Alain Miller fazia-se eco dessa surpresa e punha em relevo a importância dessa tese. «De onde lhe vem, por outro lado, a segurança de profetizar a escalada do racismo? E por que diabos dizer isso?».2 Lacan respondia: «Porque não me parece engraçado e, no entanto, é verdade. No desatino de nosso gozo, só há o Outro para situá-lo, mas na medida em estamos separados dele. Daí fantasias, inéditas quando não nos metíamos nisso».
A lógica desenvolvida por Lacan é a seguinte. Não sabemos o que é o gozo a partir do qual poderíamos nos orientar. Só sabemos rejeitar o gozo do Outro. Com o fato de nos meter, Lacan denuncia o duplo movimento do colonialismo e da vontade de normalizar o gozo daquele que é deslocado, emigrado em nome de um dito «bem dele». «Deixar esse Outro entregue a seu modo de gozo, eis o que só seria possível não lhe impondo o nosso, não o tomando por subdesenvolvido. (…) como esperar que se leve adiante a humanitarice de encomenda de que se revestiam nossas exações?». Não é o choque das civilizações, mas é o choque dos gozos. Esses gozos múltiplos fragmentam o laço social, daí a tentação de apelo a um Deus unificador.

Lacan anuncia aí também algo, o retorno dos fundamentalismos religiosos. «Deus, recuperando a força, acabaria por ex-sistir, o que não pressagia nada melhor do que um retorno de seu passado funesto». Em suas proposições sobre a lógica do racismo, Lacan leva em conta a variação das formas do objeto rejeitado, suas formas distintas que vão do antisemitismo de antes da guerra, que conduz ao racismo nazista, ao racismo pós-colonial dirigido aos imigrantes. De fato, o racismo muda seus objetos à medida em que as formas sociais se modificam, mas, conforme a perspectiva de Lacan, sempre jaz, numa comunidade humana, a rejeição de um gozo inassimilável, domínio de uma barbárie possível.

Antes de «Televisão», Lacan evoca esta questão do racismo na «Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola» e na sua «Alocução sobre as psicoses da criança», durante o mesmo ano. Na «Proposição…», Lacan evoca o que o racismo nazista tinha, na sua barbárie, de «precursor»: «Abreviemos dizendo que o que vimos emergir deles, para nosso horror, representou a reação de precursores em relação ao que se irá  desenvolvendo como consequência do remanejamento dos grupos sociais pela ciência, e, nominalmente, da universalização que ela ali introduz. Nosso futuro de mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação».3 E na «Alocução sobre as psicoses da criança», ele justifica o nó entre posição do analista e movimento da civilização: «Como responderemos, nós, os psicanalistas: a segregação trazida à ordem do dia por uma subversão sem precedentes».4
De fato, a lógica pela qual Lacan constrói qualquer conjunto humano que seja, opera uma torção naPsicologia de Grupo freudiana. Em 1921, depois de ter formulado a segunda tópica que organiza a realidade psíquica, Freud retoma a questão do destino pulsional a partir do tipo de identificação que rege de maneira determinante a vida psíquica: «E em completa oposição à prática costumeira, não escolherei, como nosso ponto de partida, uma formação de grupo relativamente simples, mas começarei por grupos altamente organizados, permanentes e artificiais. Os mais interessantes exemplos de tais estruturas são as Igrejas – a comunidade dos crentes – e os exércitos… Teremos de considerar se os grupos com líderes talvez não sejam os mais primitivos e completos, se nos outros uma idéia, uma abstração, não pode tomar o lugar do líder (estado de coisas para o qual os grupos religiosos, com seu chefe invisível, constituem etapa transitória) e se uma tendência comum, um desejo, em que certo número de pessoas tenha uma parte, não poderá, da mesma maneira, servir de sucedâneo. (…) o ódio contra uma determinada pessoa ou instituição poderia funcionar da mesma maneira unificadora».5 Para Freud, o ódio e a rejeição racista se unem, porém permanecem conectados ao líder que toma o lugar do pai ou, mais precisamente, do assassinato do pai. O ilimitado da exigência permanece no grupo e o estabelecimento do laço social é fundamentado no assentamento pulsional da identificação. O grupo estável compõe nele mesmo o mesmo princípio de ilimitação produzido pela multidão primária. Assim Freud pôde dar conta do exército como multidão organizada e do poder de matança selvagem que a acompanha. O ódio comum pode unificar a multidão, ligada a uma identificação segregada ao líder.

Para construir a lógica do laço social, Lacan não avança a partir da identificação ao líder, mas a uma primeira rejeição pulsional. O seu tempo lógico chega a propor para toda formação humana três tempos segundo os quais se articulam o Sujeito e o Outro social:
1) Um homem sabe que não é um homem;
2) Os homens se reconhecem entre si;
3) Eu afirmo ser um homem, com medo de ser convencido pelos homens de não ser um homem.
Esses tempos de identificação não partem de um saber sobre o que seria ser um homem e depois de um processo de identificação, mas essa lógica parte do que não é um homem – Um homem sabe o que não é um homem. Isso não diz nada sobre o que é um homem. Depois, os homens se reconhecem entre si por seremhomens: não sabem o que fazem, mas se reconhecem entre si. Enfim, eu afirmo ser um homem. Lá vai toda a questão da afirmação ou da decisão ligada à função da precipitação, a função da angústia ― do medo de serconvencido pelos homens de não ser um homem.6

Essa lógica coletiva é fundada na ameaça de uma rejeição primordial, uma forma de racismo: um homem sabe o que não é um homem. E é uma questão de gozo. Não é homem aquele que rejeito como tendo um gozo distinto do meu. «Movimento que dá a forma lógica de toda assimilação «humana», enquanto precisamente ela se coloca como assimiladora de uma barbárie e, portanto, reserva a determinação essencial do «Eu»…»7.

Quando Lacan escreveu esse texto, a barbárie nazista estava próxima. Começou por considerar o Judeu como aquele que não goza como o Ariano: um homem não é um homem porque não goza como eu. Ao contrário, pode-se sublinhar que, nessa lógica, se os homens não sabem qual é a natureza do gozo deles, os homens sabem o que é a barbárie. A partir de lá, os homens se reconhecem entre si, e não sabem bem como. E depois, subjetivamente, e um por um, eu me precipito. Afirmo ser um homem, com medo de ser denunciado como não sendo um homem. Essa lógica coletiva se enovela em conjunto, a partir de uma ausência de definição do ser-um-homem, Eu que se afirma e o conjunto dos homens, curtocircuitando o líder.

Essa forma lógica prosseguirá ao longo da obra de Lacan. Será complicada pela teoria do desejo e pela teoria do gozo, mas vai funcionar, inclusive na lógica do passe. A lógica de constituição da coletividade psicanalítica será abordada segundo a mesma lógica anti-identificatória, ou mais precisamente, de identificações não-segregativas, como as chamou Jacques-Alain Miller em sua «Teoria de Torino»8.

1) ― Um psicanalista sabe o que não é um psicanalista – isso não diz em nada que o psicanalista saiba o que é um psicanalista.
2) ― Os psicanalistas se reconhecem entre si por serem psicanalistas – é o que se pede na experiência do passe, que um cartel reconheça: ― esse daí, «é dos nossos».
3) ― Para se apresentar ao passe, o sujeito, ele, deve afirmar, decidir ser psicanalista e se arriscar em não convencer os outros de que ele é psicanalista.9

Se Lacan insistiu nessa dimensão do racismo na «Proposição…», é para sublinhar que todo conjunto humano comporta em seu fundo um gozo deslocado, um não-saber fundamental sobre o gozo, que corresponderia a uma identificação. O psicanalista é simplesmente aquele que deve sabê-lo para constituir a comunidade daqueles que se reconhecem como psicanalistas.

O gozo maligno em jogo no discurso racista é desconhecimento dessa lógica. Ela está no fundamento de todo laço social. O crime fundador não é o assassinato do pai, mas a vontade de assassinato daquele que encarna o gozo que eu rejeito. Portanto, sempre o antiracismo é a reinventar para seguir as novas formas do objeto do racismo, se deformando à medida dos remanejamentos das formações sociais. No entanto, nossa história põe especialmente em relevo, nas variações do racismo, o lugar central do antisemitismo, ao mesmo tempo precursor e horizonte. Retomarei a análise da nova forma do que vem aí para nós, feita por Bernard-Henri Lévy: «O antisemitismo tem uma história. Tomou, no decorrer das épocas, formas diferentes, mas correspondendo, cada vez, ao que o espírito do tempo podia ou queria entender. E eu acredito que, por razões cujo detalhe é impossível entrar aqui, o único antisemitismo apto a «funcionar» hoje, o único capaz de abusar e de mobilizar, como o fez em outras épocas, um grande número de mulheres e homens, é aquele que saberia enovelar o triplo fio do antisionismo (os judeus sustentando um «Israël assassino»), do negacionismo (um povo sem escrúpulos capaz, para chegar a seus fins, de inventar ou instrumentalizar o martírio dos seus) e da concorrência das vítimas (a memória da Shoah funcionando como a tela que esconderia os outros massacres do planeta). E então, Dieudonné estava a ponto de operar a conjunção desses três fios».10 A surpreendente resposta que lhe dirige Nicolas Bedos abre uma outra questão sobre o estatuto do cômico no estômago de nossa civilização do individualismo de massa democrático. Não basta aliás pôr em jogo o estômago, talvez precisem todas as vísceras para se fazer escutar. Consequência inesperada: a televisão torna-se uma mídia cada vez menos soft e todos se aproximam da violência da internet.



  1Miller J.-A., « As profecias de Lacan », LePoint.fr, 18 de agosto de 2013.
  2Lacan J, «Televisão» [1973], Outros Escritos, Zahar, Rio de Janeiro, 2002, p. 534.
  3Lacan J., «Proposição de 9 outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola», Outros Escritosop. cit., p. 263.
  4Ibid., p. 361.
  5Freud S., «Psicologia de Grupo e Análise do Ego», Obras completas, XVIII, Rio de Janeiro, Imago, 1969, p. 127.
  6Lacan J., «O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada» [1945], Écrits, Seuil, 1966, p. 213.
  7Lacan J., «O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada» [1945], Écrits, op. cit ., p. 213.
  8Miller J.-A., «Teoria de Torino», Intervenção no Iº Congresso científico de la Scuola lacaniana di Psicoanalisi (em formação), o 21 de maio de 2000, cujo tema era «As patologias das leis e das normas », disponível no site da École de la Cause freudienne.
  9Laurent É., « Os paradoxos da identificação », aulas de 1993 na Section Clinique, o 1o dezembro de 1993, inédito.
  10 Lévy B.-H., «Para acabar (provisoriamente?) com a questão Dieudonné», Le Point, 16 de janeiro de 2014, disponível na internet.



- Os usos da supervisão, sábado 8 de fevereiro
na Mutualité –
Uma subjetividade segunda
por Philippe Hellebois

Eu queria falar de novo com você desta suas Histórias Picantes em psicanálise1para sublinhar o que elas só evocam de passagem, a experiência da supervisão vista do lado do supervisionado, que é, no entanto, o que constitui a maior articulação. Histórias Picantes, título estranho, aliás, para falar da supervisão!

Preferia dizer título engraçado porque a supervisão  pode ser muito engraçada, o que não é sempre percebido. Se eu ousasse, diria que elas são produto de uma espécie de travessia da supervisão. Pode-se atravessar muitas coisas, a fantasia, o deserto, o oceano ou ainda o verão – basta pensar na inesquecível Travessia do verão de Truman Capote – então, por que não a supervisão? ( risadas)
O que quer dizer com isso ?
As Histórias Picantes não são nem um reflexo, nem um eco, nem um diário da supervisão. É o controle mais alguma coisa. Para o dizer mais claramente, dever-se-ia entrar um pouco no seu modo de fabricação, a cozinha interna delas. O controle, se prepara, já que se trata de dar em pouco tempo uma idéia duma análise às vezes bem comprida, ou de produzir um caso com o seu material, suas linhas de força, etc. Não pensemos que a sessão de controle se limita a ler suas notas, esperando o comentário emitido por aquele que procede ao controle, do alto de sua experiência, em geral bem maior que aquela do controlado. Uma vez ultrapassada essa etapa, pode então acontecer algo inédito, imprevisto – o que não é garantido! De fato, se o controlador não faz silenciar o controlado impondo os significantes dele – mesmo se às vezes é necessário -, entram os dois, até de modo diferente, num outro campo da palavra, uma zona desconhecida, orquestrada não mais pelo saber mas pela associação livre.
O controle, também é isso: a associação livre a respeito de um outro que não seja você. Neste sentido, o controle permite ao controlado aceder ao que Lacan chama de subjetividade segunda. Jacques-Alain Miller diz, por sua vez, que o controle resubjetiva o analista. É o momento do achado que pode aliás surgir dos dois lados – Lacan faz dessa subjetividade segunda um fruto. É a partir desse achado, do novo ponto de vista que ele dá ao trabalho analítico longo, considerável ou breve, que essas Histórias Picantes foram escritas. E, de uma certa maneira, pode-se dizer que elas foram a quatro mãos, o analisante, o analista, o supervisor e a psicanálise – e isso sem contar com o grão de sal significativo da editora!

Se supervisão é um termo indigesto, até mesmo sinistro – Lacan dixit –, sua prática não o é portanto de forma alguma?

De fato, e não hesitaria, no que me diz respeito, em falar de alegria. Aliás alegria é uma palavra muito bonita já que pode se usar em mais de um sentido, evocando as diversas categorias do prazer como também, por antítese, desgraça e infelicidade – os dicionários dão muitas vezes como exemplo as alegrias do casamento! O controle será portanto uma alegria, mas uma alegria que se merece, a alegria que não vai sem os esforços, às vezes desagradáveis, necessários para obter um resultado de valor – não é aquilo que se chama de trabalho?

Será que você esteja tentando responder à pergunta de Lacan no fim de sua «Alocução sobre as psicoses da criança»: «Qual alegria encontramos  no que faz o nosso trabalho? 



Gostaria demais ! Em todo caso, essa alegria existe, e eu não me vejo me passar dela. Porque é que o farei aliás ? O meu controlador não me bota pra fora, se bem que se presta à brincadeira faz mais de vinte e cinco anos.
Dito isso, não pensem que só existem dias felizes. Se Lacan qualificava o jovem analista – aquele que sem dúvida sempre somos um pouco – de rinoceros fazendo «qualquer coisa», lembro, da minha parte, de uma interpretação, tão viva quanto inesquecível, a respeito de uma das primeiras análises que orientava, e que constituiu para mim uma espécie de ponto de partida ou de fuga: «Dir-se-ia dois batráquios numa poça!». Uma poça, felizmente, é muito pequena para atravessar, exceto em latim!

Em vinte e cinco anos, teve oportunidade de dizer-lhe outra coisa, espero?

Claro, ele deve ser muito gentil! Em particular isso, de mais agradável a ouvir, e que situa sempre muito bem o lugar do supervisor no desejo do analista: «Agora, você se vira muito bem sozinho, mas é como se tivesse que girar em torno de mim. A supervisão não é portanto sem objeto, e esse objeto não é nunca o analisante de quem se fala, mas o supervisor que consente a partilhar a responsabilidade da prática. Pensemos no que J.-A. Miller já disse do objeto – a partir do ob latim – no último curso, «O Um-todo-sozinho»: ao mesmo tempo face a e causa de. O supervisor, portanto, é muito mais que um mestre, um bota-fogo.




 1 Hellebois Ph., Histoires salées en psychanalyse, Paris, Navarin / Le Champ freudien, 2013. Disponível em ecf-echoppe.com ou na livraria da Journée Question d’École do 8 de fevereiro de 2014.
Ler também
 Lacan J., « Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse », Écrits, Paris, Seuil 1966, p. 253 ; « Allocution sur les psychoses de l’enfant », Autres écrits, Paris, Seuil, 2001, p. 369.
Miller J.-A., « La confidence des contrôleurs », Débat avec V. Baio, H. Tizio, . R. Barros, S. Cottet, J. Chamorro, E. Laurent, La Cause freudienne, novembre 2002, n° 52,  p. 121-166 ; L’orientation lacanienne. « Choses de finesse en psychanalyse »[2008-2009], ensino pronunciado no quadro do departamento de psicanálise da Universida de Paris VIII, lições dos 12 & 26 de novembro et do 17 de dezembro de 2008, inédito..
Lazarus-Matet C., « Philippe Hellebois et le sel du désir de l’analyste », Lacan Quotidien n°333, 18 juin 2013. [  lien vers LQ 333 ]


Informações e inscrições: http://www.causefreudienne.net/


- Em torno do homem Kertész -
Um destino singular
por Philippe De Georges

O Homem Kertész foi o evento do volta literária pós-festas no campo freudiano! Esse pequeno livro, publicado sob a direção de Nathalie Georges-Lambrichs e Daniela Fernandez nas Edições Michèle, agrega uma série de textos redigidos por alguns dos nossos colegas, aos quais se juntou, como ápice, uma entrevista cheia de surpresas com Imre Kertész ele mesmo2.
O acontecimento se deve primeiro ao fato de que se acolhe e se discute a obra de um autor que foi coroado pelo Nobel, «apesar» de sua solidão e do desconhecimento com que é considerado na própria Hungria, pátria do autor. Ainda se lembra que o júri tinha reconhecido outrora a obra de Claude Simon que o público francês mantinha então na maior ignorância – e não é absolutamente demonstrado que isso tenha aliás mudado…
O Homem Kertész, portanto, como se diz o Homem Moisés. Ou seja, um escritor de primeiro plano ao encontro de dois séculos, tal como a sua obra  o esclarece no mais singular do seu engajamento. Não se trata aqui de considerá-lo como «sobrevivente», como testemunha da vida nos campos de concentração, como herói do Holocausto. A atenção mais fina se volta para aquilo que escreveu e que ninguém fora ele poderia ter escrito. Mesmo se a experiência inaugural deste homem é sua deportação com quinze anos e a sua sobrevivência após a travessia do que não foi pra ele o inferno.
O que é próprio desse escritor é, antes de mais nada, que partiu da constatação, que pôde faltar dramaticamente, senão a Robert Antelme, com certeza a Primo Levi: a impossibilidade de testemunhar. Portanto, um dia, como com uma iluminação súbita, se impôs a ele a necessidade de escrever, (para retomar a vida ao «Moloch da história») porque era impossível esquecer e que viver apela esse ato. Porque a Europa falhou e que Auschwitz é o punto zero. Mas ninguém poderia acreditar nessa biografia, compreender esse relato, esses «fatos reais». Nada pode comunicar ou transmitir o que é pior que a morte, ou seja a desaparição da vida humana. Assim se impõe a ele, que sabe que a palavra falta a dizer e a fazer entender, uma outra necessidade que é a da ficção. A literatura responde, «não como realidade». A verdade pela ficção é o seu programa. 
Uma língua vem a se escrever. É a de um autor alemão de língua húngara, como diz. A língua materna não tem vez e K. deve achar um instrumento, como teve de fazer também Paul Celan. A batida singular é aqui o que o autor qualifica de língua «atonal», não sem relação com a música húngara que marcou o início do século XX de seu gênio. É o estilo que vai marcar esse esforço obstinado para dizer o que é a inexistência, pois inexistir é o verbo que falta à língua comum para traduzir esse destino singular.

Kertész não se inscreve numa categoria pré-estabelecida com a qual poderia levar a testemunhar; nem a dos antigos deportados, nem a de Judeu, de sobrevivente, de vítima. A posição dele é o que ele nomeia de «inappartenance», de não-pertencer-a-nada. É o que o conduz a levar alto uma palavra que reivindica tanto o singular quanto o universal. Pois, para ele, os campos nazistas não são uma questão nacional judia. Afirma, pelo contrário, o caráter universal do Holocausto3, como uma herança passada do judaísmo à cristandade, e depois a toda a cultura. Já se entende aí que a loucura nazista não foi uma extravagância da história, um acidente de percurso. Para Kertész, é da queda nos abismos dos valores da Europa de que se tratou. Esse postulado se baseia na convicção, que comunicou à primeira esposa, no momento de se lançar na aventura: Auschwitz foi a exacerbação das virtudes educativas e da neantização que viveu desde a infância. Existe homogeneidade entre Auschwitz e o pai. É essa a sua lógica. A mentalidade nacional-socialista se tornou possível  pela infiltração de todo o tecido social por uma grande renegação e uma mentira universal. No caso desse autor tão próximo de Freud, de quem se impregnou, se trata de uma estranha transmissão, a que faz que o filho herda do pecado do pai. Pierre Naveau faz ressoar um certo «Pai, não vês que eu estou queimando?», com o terrível canto de Goethe do Rei dos Amieiros. De pai em filho, é a morte que caminha galopeando na noite e no nevoeiro.  «Auschwitz existe no ar faz muito tempo4». Tal seria a chave desse «complexo universal do pai» que Kertész denuncia. Daí sem dúvida detestar seu nome próprio. Kertész tomou a culpa sobre ele. É culpado, é criminoso. É o que manifesta a presença da criança ausente, para sempre, aquele que nunca vai nascer, pois recusa transmitir a possibilidade que tal destino se perpetue.
Não se trata somente do «sabre levantado de todas as guerras de cem anos», do ódio inesgotável dos irmãos. Aqui, o pai sacrifica o filho. Trata-se da faca levantada do Holocausto, aquele que é um instante suspenso acima do pescoço de Isaac, mas que nenhum mensageiro divino vem deter sua corrida[i]. Todos os filhos se chamam Isaac e o furor dos pais chega da noite dos tempos.


1Georges-Lambrichs N. et Fernandez D. [s/Dir.], L’homme Kertész, Ed. Michèle, Paris, 2013. Com textos de Guy Briole, Catherine Lazarus-Matet, Myriam Mitelman, Pierre Naveau, Christiane Page, Daniel Roy, uma entrevista inédita com Imre Kertész e um posfácio de Clara Royer. Disponível em ecf-echoppe.com
2La Cause freudienne já tinha publicado uma primeira transcrição no seu n°77
3Kertész I., L’Holocauste comme culture, Actes Sud, Arles, 2009.
4Kertész I., Kaddish pour l’enfant qui ne naîtra pas, Actes Sud, Arles, 1995.

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