A propósito de Deux jours, une nuit (Dois dias, uma noite) dos irmãos Dardenne.
Poucas obras tocam os elementos da estrutura subjetiva que essa obra, justamente, anima em seus personagens em luta com situações diversas*. Reconhece-se isso graças a um índice: cada detalhe encontra sua razão de ser tal qual isso foi «querido»... pela estrutura, se o autor se deixa levar por ela suficientemente, da forma certa. O último filme dos irmãos Dardenne é um exemplo.
Um problema de lógica
Uma mulher de condição modesta voltando de uma licença médica por depressão, e se preparando para retomar seu posto de operária numa fábrica, toma conhecimento de que uma votação de seus colegas resultou em sua demissão. Seus colegas, na verdade, escolheram a gratificação, que se elevou a determinada soma, ao invés da manutenção do posto dessa mulher. Escrevendo esse curto resumo, percebo que esses elementos são como os dados primeiros de um problema de lógica: de lógica clássica, onde vai tratar-se, para ela, de recuperar um nome de ser, mas também de lógica coletiva que Lacan, em 1945, considerava como um complemento da primeira1. Nesse filme, há certamente algo raciniano, pelos momentos de escolha forçada que se apresentam, mas também algo muito mais moderno do qual Lacan traçou a perspectiva em sua doutrina absolutamente inédita que porta sobre o «coletivo».
Instante de ver
Uma mulher é encurralada ao mesmo tempo em que sua depressão ainda presente é o indício que ela, em algum lugar dela mesma, cedeu de seu desejo; um mulher, então,
suscetível de engrossar as fileiras dos «ejetados do Outro»2. Se o filme acabasse aí, teríamos apenas uma crônica social, que um céu cinza e uma arquitetura sombria tornariam mais verdadeira. O filme toma, no entanto, um outro caminho, sinal de que é menos questão de verdadeiro do que de real.
Um homem se mantém, de fato, ao seu lado: ele a ama, a apoia, a impele a lutar. Esse amor impede essa mulher de juntar-se ao coletivo dos ejetados; ela não pode mais juntar-se ao coletivo do trabalho ao qual pertencia: ela está num impasse lógico.
O tempo de compreender
Uma porta estreita se abre, então: dois dias e uma noite para convencer cada um que participou dessa votação. Dois dias e uma noite para dissolver o coletivo que foi maciço em seu voto, para devolver cada um à sua posição de sujeito. Que encarna então essa mulher durante esse lapso de tempo? Um objeto: precário e instável; um golpe agalma, um golpe palea. Tão precário que sua existência de sujeito é ameaçada pela tentação de empurrar mais longe a ejeção do Outro. Que indício nos faz dizer que essa mulher encarna um objeto? Sua «enunciação»: frases repetidas – sempre as mesmas - a cada encontro com aqueles que foram seus colegas : os elementos do problema lógico inicial se representam a cada vez, para cada um, por seu intermédio.
Não é ela que fala, mas é sua presença como voz que age como objeto e que, em cada um, produz não mais um efeito de massa, mas um efeito de sujeito. Isso fala, e o filme se torna, então, uma série de efeitos de sujeito.
O momento de concluir
A conclusão, sem deflorar o fim do filme, mantém-se em duas teses: primeiramente, o jogo foi trapaceado – ele sempre é quando se crê na existência do Outro ; em segundo lugar, se você reintegra o coletivo, deve aceitar sua lógica massificante e, portanto, segregativa: há os que estão nele e há os que estão... excluídos. Recusa da jovem mulher que escolhe, dessa vez, uma solidão assumida.
Últimos pontos: Não é indiferente que o título do filme tenha a ver com uma contagem, pois, nesse filme, trata-se de resolver o problema de contar – como se diz: para alguém -, e ao mesmo tempo de se contar; também não é indiferente que o herói dessa história seja uma mulher que encarna, em cada um de seus encontros, a inconsistência do Outro.
* Esse trabalho se inscreve num trabalho pessoal sobre textos relativos ao coletivo a à Escola : « La psychiatrie anglaise et la guerre », de Lacan (Autres écrits, Paris, Seuil, 2001) ; « La théorie de Turin sur le sujet de l'École» (La Cause freudienne n° 74, avril 2010) et Politique lacanienne de J.-A. Miller (Collection rue Huysmans) ; « Le réel et le groupe » d'Éric Laurent (Ornicar ? Digital, on line).
1 –Lacan J., « Le temps logique et l'assertion de certitude anticipée », Écrits, Paris, Seuil, 1966, p. 213
2 –Miller J.-A., Politique lacanienne, 1997-1998, Paris, Collection Rue Huysmans, 2001, p. 68.
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Maps to the stars, de David Cronenberg, por Thomas Kusmierzyk
O novo longa-metragem de David Cronenberg, apresentado numa competição oficial em Cannes, nos propõe uma virada no universo desregulado que é Hollywood. Se a imprensa, em sua maioria, percebeu o filme como um jogo de massacre dessa grande família do cinema americano, o diretor prefere interromper rapidamente esta interpretação: seu filme «não é uma sátira de Hollywood; uma sátira exagera, Maps to the stars diz a verdade»[1]. Sua obra se reconhece como mais do que uma simples encenação dos desvios da indústria do cinema. Hollywood deve ser captada aqui como uma família disfuncional onde cada um vive com suas obsessões e suas angústias.
Este filme é o drama de uma família. Todo mundo goza, cada um de seu lado, o que Cronenberg consegue mostrar brilhantemente numa cena em que coloca quase sistematicamente os personagens sozinhos no enquadre[2].
Sem parar, a câmera segue as errâncias e os pontos de colisão desses personagens trabalhados por atores no topo de sua arte – aliás, Julianne Moore ganhou o prêmio de melhor interpretação feminina em Cannes por sua interpretação. Ágatha chega a Hollywood. É uma jovem mulher que traz sobre a pele estigmas de uma tragédia passada. Graças à relação que ela iniciou, via Twitter, com Carrie Fisher[3], encontra Havana Segrand e se torna sua assistente.
Esta última é uma atriz desesperada que aguarda o papel de sua vida, no caso aquele de sua mãe, uma estrela que conheceu um destino trágico. Quanto a Benjie, é uma criança estrela de 13 anos, que sai de um tratamento de desintoxicação. Sua mãe, sua agente, é totalmente devotada à carreira desse filho prodígio. O pai é um «psi de sucesso» que pratica uma terapia para os menos atléticos. Uma cena chocante mostra uma sessão durante a qual Havana, em roupas íntimas, alongada em uma esteira de praia, se «lembra» dos traumatismos incestuosos supostamente infligidos por sua mãe, enquanto seu terapeuta se apressa, distribuindo-lhe massagens e gritando ordens expressas para liberar sua paciente em lágrimas do mal que a corrói.
Os primeiros diálogos entre Benjie e sua mãe definem a cena. Trata-se de business, mais do que de uma relação familiar: é preciso dar aos produtores segurança de que Benjie está realmente sóbrio e que pode assegurar o melhor a seus contratos. A rotina da jovem estrela é perturbada por uma alucinação, a visão inquietante de uma fã morta que vem lhe falar à noite. Havana também está assombrada pelo espectro de sua mãe, ao mesmo tempo objeto mais odiado e mais idolatrado.
Se Maps to the stars não é um filme de terror propriamente dito, certas cenas são aterrorizantes, menção especial para Havana - Julianne Moore, que descobre que obtém o papel tão esperado após a morte do jovem filho de sua rival. As alucinações não são fantasmas propriamente falando, são lembranças, esclarece Cronenberg[4]. A terapeuta de Benjie não se engana quando lhe diz, durante uma sessão, que recalcar demais certas coisas pode matá-lo.
Ágatha parece ser a exceção no filme. Se os outros estão desbussolados, perdidos em suas aspirações para ser alguém, ela traz em si uma verdade. Ela é o retorno do recalcado que vem como uma onda poderosa tragar essa família degenerada. Ágatha se orienta por um poema de Paul Éluard, Liberté [5] , do qual ela recita versos tais como mantras, a fim de não se perder de novo. A verdade que ela carrega, do casal parental, vai precipitar a combustão dos protagonistas. Ninguém será poupado, nem mesmo Ágatha que, se conseguiu se preservar da vaidade de Hollywood durante um tempo, será igualmente arrastada pelo turbilhão.
Assim, Jerôme, o motorista de Limousine – aspirante a ator – recentemente desembarcado de seu Meio-Oeste, perde o que lhe resta de inocência ao ceder aos avanços de Havana, estrela sem viço. Então, as coisas se encadeiam até a cena final, certamente onírica e poética, mas definitivamente trágica.
David Cronenberg não quis fazer de seu filme uma análise [6]. Ele faz o que sempre fez: filmar e mostrar corpos. «Como diretor, se é forçosamente obcecado pelo corpo humano (...) passamos nossa vida a observar e a filmar os corpos e os rostos humanos. Para mim, a própria essência do ser humano, é o corpo. (...) No início da minha carreira, eu utilizei a ficção científica e o horror e em seguida passei ao melodrama e ao drama psicológico. Mas, no fundo, trata-se sempre de um único e mesmo domínio: o humano.»[7]
Hollywood pode desvelar sem pudor o que faz seus habitantes gozarem. O diretor evoca a angústia existencial destas atrizes que não recebem mais chamadas de telefone, o medo delas de desaparecer. Hoje, se você não estiver na Internet, se você não aparecer na tela, você não existe. O filme fala de armadilhas e da liberdade. O que é a liberdade e como é que a encontramos?[8] Os personagens do filme fazem a descoberta cruel de que a celebridade não lhes dá a liberdade, mas que é mais uma armadilha e que quanto mais quiser brilhar, acaba-se por queimar.
1 - Les Inrockuptibles n°963 du 14 mai 2014, p.48.
2 – « Entretien : David Cronenberg », propos recueillis par J. Reitzer. Disponible à l'adresse suivante : http://www.troiscouleurs.fr/2014/05/entretien-david-cronenberg/
3 - L'actrice, qui joue ici son propre rôle, est devenue culte pour avoir incarné la princesse Leia dans la saga Stars Wars.
4 – « Entretien: David Cronenberg », Ibid.
5 – Éluard P., Poésie et vérité, 1942
6 – Interview de David Cronenberg par Frédéric Mitterrand pour l'émission Jour de Fred du 15 mai 2014 sur France Inter. Le podcast est disponible sur iTunes.
7 – Interview de David Cronenberg (Maps to the stars), propos recueillis par Lucile Bellan, disponible à l'adresse suivante : http://www.artistikrezo.com/2014052016349/cinema/dossiers/interview-de-david-cronenberg-maps-to-the-stars.html
8 - Interview de David Cronenberg par Frédéric Mitterrand, Ibid.
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Cegueira fatal, por Estelle Bialek
A propósito de Pas son genre [Não é de seu gênero] de Lucas Belvaux e de La chambre bleue [O quarto azul] de Mathieu Amalric.
A angústia entre desejo e gozo antecipa o encontro amoroso porque prenuncia a última visão do destino-x deste encontro com o desejo dos protagonistas.
Dois filmes que estão nas telas neste momento ilustram a problemática. Trata-se de Pas son genre, de Lucas Belvaux, e La chambre Bleue, de Mathieu Amalric, baseado num romance de Simenon(1). Estes dois filmes levantam a questão desta última visão, na qual o sujeito deve acertar suas contas com a cegueira propriamente edipiana na qual seu destino se cumpriu.
No Seminário A angústia, Lacan interroga: «Qual é o momento da angústia? Será ele a possibilidade do gesto pelo qual Édipo arranca seus olhos, sacrifica-o, os oferece como resgate pela cegueira em que se consumou seu destino? Será isso a angústia? Será ela a possibilidade que o homem tem de se mutilar?» E ele responde: «Não; trata-se propriamente do que me esforço por lhes apontar com essa imagem: é a visão impossível que os ameaça, a de seus próprios olhos no chão.»*
Em Pas son genre, a última visão do acerto de contas amoroso entre uma cabeleireira e um professor de filosofia parisiense deslocado para o interior do país, está colocada desde o início. Inexoravelmente o destino se cumpriu de maneira cruel, apesar da clarividência da cabeleireira, cujo desejo parece mais advertido do que o do filósofo, que está mais inclinado a se cegar sobre as premissas de uma catástrofe anunciada. O mistério de La chambre bleue desenvolve esta resposta de cegueira anunciada do marido infiel, que se deixa seduzir por uma mulher que não era de seu gênero. Neste filme, a mulher, repudiada por seu amante, tece sua teia de sedução sexual, e como ela não ignora que seu amante não está mais apaixonado por ela, irá eliminar todos os obstáculos à sua última visão de veste religiosa, do gozo feminino sem limites.
Em ambos os filmes, é a mulher que conduz o jogo da educação sentimental do homem, que tem de aceder à sublimação do desejo, no encontro sexual, porque «só o amor permite o gozo condescender ao desejo», diz Lacan em seu aforismo sobre o amor (2).
Esta é uma falha no Pas son genre, porque o amor, como fato cultural, faz obstáculo à conjunção dos amantes. O efeito pigmaleão do professor de filosofia sobre sua aluna, supostamente kantiana, terminará rapidamente, pois ela lhe oporá mais o saber da cabeleireira sobre a mascarada feminina, e o fã-clube das People. É um fracasso amargo no filme La chambre bleue para o marido infiel, porque o gozo dos amantes se nutre do mal entendido fundamental sobre o amor que o marido leva à sua mulher. No início do filme, pensa-se ter o culpado, mas ignora-se ainda quem é a vítima. Julien matou sua amante ou sua mulher?
A verdade analítica é completamente diferente da verdade judiciária: só a angústia do marido infiel, como sinal de um perigo que não era sem objeto, teria permitido a ele escapar da cegueira de um erro judiciário.
1Pas son genre de Lucas Belvaux, d'après le livre éponyme de Philippe Vilain, avec Emilie Dequenne, Loïc Corbery et La chambre bleue de ( et avec) Mathieu Amalric, d'après le roman éponyme de Georges Simenon, avec Léa Drucker, Stéphanie Cléau (sélection officielle du Festival de Cannes, section « Un certain regard »).
2Lacan J. O Seminário - livro 10. A angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. p. 197.
* Idem. p. 180.
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LIDO HOJE, por François Regnault
28 de maio de 2014
Lido (no Almanach Vermot, sempre caro) estes trechos do Dicionário das ideias recebidas de Flaubert, ao qual era preciso sempre se referir:
«Gato: Chame-os "tigres de salão" (chic).
Cachorro: Especialmente criado para salvar a vida de seu mestre, "O amigo do homem", porque ele é seu escravo devotado.
Champanhe: Caracteriza o almoço de cerimônia. Fazer semblante de detestá-la, dizendo "Isso não é vinho". Provoca o entusiasmo entre as pessoas populares. "A Rússia consome mais champagne que a França!" É por meio dela que as ideias francesas se espalharam na Europa. Sob a Regência, não se fazia outra coisa mais que bebê-la. Mas não se bebe champanhe, bebe-se on le "sable" – com abundância.
Ferrovias: Se Napoleão as tivesse tido à sua disposição, ele teria sido invencível! »
29 de maio de 2014
Lido em Thomas de Quincey. Fazer uma comparação entre o inglês e o francês:
«Se um dia um homem se entregar e cometer um homicídio, muito em breve ele não hesitará em roubar; e, a seguir, ele vai do roubo à bebida e ao desrespeito ao Sabbath, e daí à incivilidade e procrastinação.»
Não lido, mas aplicado aos Franceses: «Se um francês começa a considerar que a Shoah – o Holocausto -, é um detalhe, e a minimizar a tortura na Algéria, e pensa que há estrangeiros demais na França e estigmatiza Árabes e Romanos, então ele acaba por desviar os fundos públicos, por efetuar investimentos na Suíça, por abusar das camareiras nos hotéis, e fazer faturas falsas, e enfim à incivilidade com uma pessoa próxima e à procrastinação no topo da República.
30 de maio de 2014
Lido no Péguy na Ève, a propósito de 30 de maio
«A outra morreu numa manhã num trinta de maio
No hesitação e estupor públicos
Uma floresta de horror, de machados e lanças
A possuía circunscrita num círculo fechado.»
Trata-se de Joana D´Arc. «Uma» é Santa Genoveva:
«E uma morreu uma noite em um três de janeiro...»
31 de maio de 2014
Lido hoje, sempre no Almanach Vermot, a crônica «Melhor eles teriam feito, se tivessem silenciado»:
O sujeito da ciência?: «Máquinas voadoras mais pesadas que o ar são impossíveis.» (Lord Kelvin, presidente da Royal Society, 1895)
Lido ainda em Péguy ("Victor Marie Comte Hugo"), nos "Cadernos XII, 1" (23.10.1910), Obras completas em prosa, Bibl. De la Pléiade, tomo III, p.226-7:
O que é a política? «A Coluna na Place Vendôme» ainda não era a coluna [Quando Victor Hugo escreveu sua «Ode à coluna da Praça Vendôme»]. Só tinha o que Napoleão fizera (um sopro) e o revestimento de bronze dos canhões tomados dos austríacos, dos mil e duzentos canhões tomados dos inimigos, eu penso, num só campo. Ela não tinha mais que este revestimento de bronze da história mais importante, da maior glória militar, ela não era mais que este revestimento, em 1805. A política não era em absoluto uma história passada, quero dizer, a onipotência única, a política interior, aquela na qual os franceses lutam uns contra os outros; porque lutar contra os austríacos todo mundo faz, todo mundo pode fazer o mesmo, não é? Não é astucioso. O que é astucioso é lutar entre nós.»
1 de junho de 2014
Lido «Lohengrin / Grande ópera romântica de Richard Wagner e sua primeira representação em Weimar nas festas de Herder e de Goethe », por Franz Liszt, 1850 (em Franz Liszt Três óperas de Richard Wagner consideradas de seu ponto de vista musical e poético. Actes Sud, maio de 2013) :
« A introdução [A Abertura de Lohengrin] contém e revela o elemento místico sempre presente e sempre escondido na peça : segredo divino, força sobrenatural, sucessão de incidentes, suprema lei do destino dos personagens e da sucessão de incidentes que vamos contemplar. Para nos ensinar a inenarrável potência desse segredo, Wagner nos mostra a beleza inefável do santuário, habitado por um Deus que vinga os oprimidos e só demanda amor e fé aos seus fiéis. Ele nos introduz no Santo Graal; ele faz brilhar aos nossos olhos esse templo de madeira incorruptível às paredes perfumadas, aos portões de ouro, às vigas de asbesto (amianto), às colunas de opala, às ogivas de ônix, aos átrios de Cymophane, cujos pórticos esplêndidos só estão próximos daqueles que têm o coração elevado e as mãos puras. De maneira alguma ele nos faz perceber dentro de sua estrutura imponente e real, mas como se conduzindo nossos sentidos fracos, primeiro ele nos mostra o santuário refletido em alguma onda azul ou reproduzido por alguma nuvem iridescente – que reflete as cores do arco-íris.»
Exercício: Você relerá este belo texto, assinalará as palavras raras e, por sua vez, descreverá um lugar que tenha inspirado você da mesma forma que o santuário do Santo Graal inspirou Franz Liszt. Você vai notar que o asbesto, cujo nome significa que não pode queimar, significa, infelizmente, o nosso amianto fatal!
(Ilustração no alto: Franz Liszt)
2 de junho de 2014
Lida uma das últimas cartas da correspondência entre Freud e Jung. (Correspondência Sigmund Freud/C.G. Jung, « Conhecimento do Inconsciente », Ediçoes Gallimard, 1975, tomo II :
O LAPSO. Carta de Jung a Freud de 11-14 de dezembro de 1912 : « Mesmo os cúmplices de Adler não querem me reconhecer como um de vocês.» [Ou Jung escreveu «Ihrigen» (vocês) por «ihrigen» (deles): «como um deles». A maiúscula indica o plural de cortesia, a minúscula, a terceira pessoa do plural.]
Carta de Freud a Jung de 16 de dezembro de 1919 :
Imediatamente Freud ouve o lapso: «[...] Agora você está bastante objetivo para prestar homenagem sem ficar irritado com o lapso seguinte? «Mesmo os cúmplices de Adler não querem me reconhecer como um de vocês.»
Resposta de Jung a Freud de 18 de dezembro de 1912:
«Sou bastante objetivo para perceber seu truque [em francês, no texto] atualizado. [...] Veja você, meu caro professor, você opera com esse truque há muito tempo, meus atos sintomáticos não importam de forma alguma, porque eles não significam absolutamente nada ao lado da trava considerável que há no olho do meu irmão Freud. Na verdade, eu não sou neurótico de modo algum – satisfeito!
(Tudo que nos irrita nos outros pode nos levar a uma compreensão de nós mesmos. Carl Jung)
NORMAL. Carta de Freud a Jung de 3 de janeiro de 1913
« ... quanto ao resto, não podemos responder à sua carta. Ela criou uma situação que causaria dificuldades no comércio oral e que se tornou impossível de escrever. Fica acordado entre nós analistas que nenhum de nós deve ter vergonha de seu pedaço de neurose. Mas aquele que, se comportando de maneira anormal, grita sem parar que é normal, desperta a suspeita de que ele não tem conhecimento de sua doença. Eu proponho a você, portanto, que rompamos completamente nossa relações privadas. Eu não perco nada com isso [...] »
3 de junho de 2014
Lido hoje no The Spectator, de Addison & Steele e outros, este jornal em quatro volumes publicado na Inglaterra de 1711 a dezembro de 1714 (leitura muito cara a Jacques-alain Miller e a mim mesmo) de onde retiro os princípios a seguir quando a rubrica de um « lido hoje » é proposta no Lacan Quotidien [The Spectator, em quatro volumes, Everyman´s Library, 1979, vol. 1 No 1, Quinta-feira, 1 de março de 1722, carta de Addison]:
« Assim, vivo no mundo mais como um Espectador da Humanidade do que como um das Espécies; isto significa que eu me transformei em Estadista Especulativo, Soldado, Mercador e Artesão sem nunca me misturar com qualquer Parte Prática na Vida. [...] eu nunca casei com qualquer Partido com Violência, e estou resolvido a observar uma Neutralidade exata entre os Whigs e os Tories* , a menos que eu seja forçado a me declarar pelas Hostilidades de um ou de outro Lado. Em suma, eu terei agido em todas as Partes da minha Vida como um observador, que é o caráter que pretendo preservar neste Documento/Livro. »
N.T. * Whigs : membros de partido político inglês do séc. XVIII e XIX que apoiavam o Parlamento contra os poderes ilimitados da Realeza. Tories : membros do partido conservador inglês.
Tradução: Cláudia Aldigueri e Eucy de Mello
Comunicação: Maria Cristina Maia Fernandes