Texto de Orientação
OS TRAUMAS NA CURA ANALÍTICA – BONS E MAUS ENCONTROS COM O REAL, por Marie-Helène Brousse*
Há uma teoria espontânea do trauma. O que não podia acontecer, aconteceu. Impensável! Inimaginável! Insuportável! Demais.
“Perco o controle” – Diante do impossível realizado, o sujeito está perdido, não é mais o que ele era, nem para si nem para os outros. Nenhuma resposta vale. O sintoma explode.
A medicina, apoiada na ciência moderna, busca, então, uma solução – a pílula do dia seguinte, a preparação antecipada, a verbalização imediata. É a resposta pelo apagamento da memória – que tudo possa voltar a ser o que era antes e que os homens voltem a se ocupar dos seus afazeres tal como o imperativo do laço social exige. Não aconteceu porque não deveria ter acontecido. A questão surge: como viver depois do trauma sem o trauma? Não se tira nenhuma lição do trauma.
Como o trauma faz parte da existência e não pode ser eliminado, a psicanálise opta por uma estratégia diferente, mais pragmática. Nenhuma alteração da memória, nenhum apagamento, nenhuma contra programação, nenhuma catarse, não poderão eliminar o Real. Mesmo supondo que tais soluções sejam possíveis, os danos colaterais seriam grandes demais e inaceitáveis do ponto de vista ético.
Então, o que propõe a psicanálise? Ela considera que o trauma aconteceu, que ele modificou o sujeito e que ele se apresenta como avesso de um ato. É por isso que ela escolhe tirar do trauma um ensinamento. Desde a sua origem, a psicanálise, os analistas, Freud antes de todos, tiveram que reconhecer uma evidência clínica: a realidade psíquica não coincide de modo algum com a realidade objetiva, seja ela fatual ou do discurso.
Mais ainda, a noção de trauma exige uma nova definição do fato e do evento que seja congruente com o sujeito do inconsciente. Lembremo-nos do célebre exemplo citado em A Interpretação dos Sonhos revisto por Lacan.
Um pai perdeu seu filho, perda cruel, trauma no sentido comum. Exausto, ele pediu a uma pessoa familiar que se ocupasse de velar alguns instantes o corpo do filho amado. Mas, por sua vez, esse homem adormeceu ao lado da criança que dormia o seu sono derradeiro. De repente, um barulho: o fogo começou a queimar o corpo do filho amado. Esta é a realidade. Como é que o inconsciente responde? Por um pesadelo. A criança se aproxima e murmura “Pai, não vês que estou queimando?”. Onde está o trauma? A impossível voz do morto, eis o que verdadeiramente desperta o pai.
Uma imagem indelével, a erupção de um terror, a exacerbação de uma emoção, uma palavra eternamente inarticulável, são múltiplas as referências às feridas que não se apagam, “perdas imaginárias no ponto mais cruel do objeto”. A expressão é de Lacan que celebra, na perda, a relação do trauma aos objetos, deixando o sujeito desnorteado, em um mundo que perdeu o sentido.
Aqui, inicia-se a cura, no intervalo da fratura do sujeito, da perfuração da sua realidade. Sobre estes pontos de fixação, a máquina de produzir sentido se precipita e esgota-se, confrontada ao que cegamente, o inconsciente real, não cessa de repetir.
Todo mundo delira, isto é, todo mundo dá seu próprio sentido, porque todo mundo é traumatizado. Mas o delírio não liberta do trauma. Quando isso se repete, em quais condições um eu pode advir?
À universalização do delírio dos Uns-sozinhos, responde a generalização do trauma. O mal estar correlacionado ao sintoma cedeu seu lugar ao trauma relacionado à rejeição da marca, na medida em que o Simbólico perde seu poder diante do Real. A utopia dominante não é mais o recurso ao Pai, mas ao risco zero com a docilidade geral que ele implica. Porém, não se leva aí em conta essa “coisa obscura” que está em nós. Cabe à psicanálise atribuir-lhe seu justo lugar, sempre singular, sempre contingente.
* Convidada das XXIII Jornadas Clínicas da EBP-Rio e do ICP-RJ e Christiane Alberti
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