A cidade é a nossa paisagem
contemporânea. Ela é um campo de escritas, imagens, resíduos, ruídos e cheiros.
Ela pode ser pensada também como uma superfície, que ora sim e ora não, se
deixa perpassar por nossa escuta e olhar. A paisagem muitas vezes é muro. Isso
implica que aquele que olha e escuta se confronta com certa opacidade na
paisagem. E dessa opacidade, como experiência, a arte é sempre expressão.
Transmitir o enlace entre a arte e a cidade é uma aposta que permite pensar
nossa prática como analistas, no horizonte de nosso tempo. Portanto, esse
espaço pretende ser nosso skyline, um pequeno recorte do panorama urbano, um
campo de intersecção entre a arte e a psicanálise, onde faremos circular
entrevistas, textos, filmes e exposições, suporte para o trabalho de manter
vivo o laço entre a Escola e a cidade.
O texto O cheiro do trauma
de Cristina Duba inaugura este espaço e nos convida,de forma inquietante e
singular, a pensar a cidade como um corpo permeável à memória, ao trauma e ao
acontecimento. A todos boa leitura!
Fátima Pinheiro.
Comissão de divulgação e
comunicação das XXIII Jornadas da EBP-Rio e do ICP-RJ
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O CHEIRO DO
TRAUMA, por Cristina Duba
Simone de Beauvoir, no
pequeno prefácio que escreve para Shoah, Vozes e faces do Holocausto, edição em
brochura do roteiro do filme de mesmo título de Claude Lanzmann, diz: “(…)
jamais teria imaginado tal aliança do horror e da beleza. Seguramente, uma não
serve para mascarar o outro, não se trata de esteticismo: ao contrário, ela o
evidencia com tanta invenção e rigor que temos consciência de contemplar uma
grande obra”.[1]
A ousadia de dizer que a
beleza permite evidenciar o horror porque acrescenta a ele uma invenção
rigorosa, essa audácia de aliar termos tão estranhos um ao outro, como a beleza
e o horror, para além dos esteticismos, como diz a autora, nos reenvia à
preciosa afirmação de Jorge Semprun em A Escrita ou a vida, onde relata sua
experiência no campo de concentração de Buchenwald durante a Segunda Guerra
Mundial. Aludindo à questão crucial que abalava um grupo de sobreviventes desse
acontecimento brutal e inédito – como tornar crível um acontecimento verídico
que transpunha os limites da imaginação, como fazer testemunho do horror – ele
concluía: “Só o artifício de um relato […] conseguirá transmitir parcialmente a
verdade do testemunho”.[2]
Nesse relato, Semprun
repetidamente se refere ao “cheiro da fumaça das chaminés”, resto de memória do
qual nunca pôde se livrar e que irrompia nos momentos mais inesperados de sua
vida, interrompendo a rotina do cotidiano. Um cheiro inesquecível,
indescritível, que ele podia apenas nomear, apontar, cingir, com angústia. Em Shoah,
essa mesma referência é feita por sobreviventes entrevistados. Inúmeros autores
da literatura de testemunho, da mesma forma, se referem a esse cheiro.
Em
Semprun, no entanto, esse índice traumático se destaca, ganha os contornos
inquietantes de uma revelação inesquecível que se expande pela vida inteira.
Ele se refere inúmeras vezes, quase a copiá-la para transmiti-la, a frequência
com que esta lembrança o acomete. Uma lembrança que retorna com uma densidade
que abriga alguma coisa intraduzível, que continua a espantar aquele a quem ela
atravessa. Um cheiro não sem palavras – afinal, muito já se disse e se escreveu
sobre isso – mas para o qual as palavras sempre deixam entrever – em excesso –
sua precariedade.
Mais que um acontecimento,
um processo, uma presença constante que atualiza o insuportável do que terá
sido.
A fugidia materialidade da
lembrança que tomou a forma de um cheiro, que irrompe inesquecível,
inelaborável, irrepresentável, mas não sem palavras, exigiu de Semprun, ao que
parece, a invenção de uma ficção rigorosa para tornar verídica essa presença
real que, de outro modo, pareceria um sonho.
_________________________
Notas:
[1]Lanzmann, C. Shoah, Vozes e faces do Holocausto. Ed.
Brasiliense, São Paulo: 1987.
[2]Semprun, J. A Escrita ou a vida. Companhia das Letras, São Paulo: 1995.
[2]Semprun, J. A Escrita ou a vida. Companhia das Letras, São Paulo: 1995.
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