Trauma - Blitz, por Eric Laurent
Trauma é uma palavra que nos vem da Renascença, como Sinthome. O trauma se escuta melhor quando ressoa sua origem grega: trôma,
a ferida. Lacan nos fez entender que é a ferida irreparável que faz
lalíngua sobre o corpo. É o traumatismo do nascimento à língua.
O esplendor da origem há muito tempo foi cantado em poesia e
valorizado pela filosofia. O avesso desse esplendor é o sol negro do
trauma e seus efeitos de atração estranha, de buraco negro absorvendo
misteriosamente toda energia no sentido que Jacques- Alain Miller deu à energeia
no final de seu curso “O ser e o Um”. Ele é o buraco que bordeia a
iteração do Um. Ele organiza a topologia do espaço na qual se situa o
que nós chamamos sujeito.
O trauma tem também relação com o múltiplo. Há o trauma do
qual testemunha o autista, há aquele que Michel Leiris e seu “reusement”1.
No seu caso, o traumatismo é aquele da enunciação. No ato da
enunciação, há nomeação latente desse primeiro núcleo traumático. O
traumatismo não é simplesmente a inscrição de um choque, ele é também o
buraco produzido pelo ato de enunciação.
A citação que me agrada sobre o trauma – ferida é uma
variação sobre o que Lacan chamava o parceiro “devastação". O
homem-devastação, para uma mulher, esclarece a devastação que
acreditamos conhecer muito bem entre a mãe e a filha, ou a devastação
que pode fazer uma mulher visando uma outra. A marquesa de Merteuil
escreve ao visconde de Valmont: "Quando uma mulher golpeia no coração de
outra, ela raramente erra em encontrar o lugar sensível, e a ferida é
incurável .”
Se o trauma fosse um livro, seria um livro ou uma novela de
Kafka. No “Um Relatório para uma academia”, o macaco torna-se homem
,traumatizando seu professor de humanidade, aquele que se apresentava
como mestre da linguagem dos homens.
“Minha natureza de macaco escapou de mim frenética, dando
cambalhotas, de tal modo que com isso meu primeiro professor quase se
tornou ele próprio um símio, teve de renunciar às aulas e precisou ser
internado num sanatório”.
Um Relatório para uma academia - Kafka
Se o trauma fosse uma música seria “Elektra”, ópera de
Richard Strauss escrita com Hugo Von Hoff-mansthal antes da Grande
Guerra, tragédia em um ato de uma violência e de um horror sem igual. A
filha traumatizada pelo assassinato do pai grita seu nome e sua dor do
mesmo modo que um rugido animal. Ela se segura no lugar de sua dor de
existir e aí se consome. Como dizia o texto de apresentação da última
Ópera montada por Patrice Chereau neste verão, no festival de
Aix-en-Provence, o Elektra dirigido por Esa-Pekka Salonen “Richard
Strauss fez uma ópera violenta e súbita, com sua partição vulcânica, seu
ato único de espera febril depois de violência irrepreensível, sua
imensa orquestra também refinada que desencadeia, e suas vozes de
mulheres que cantam o desespero de uma família decomposta. A solidão do
indivíduo e a violência íntima jazem no coração do trabalho teatral de
Patrice Chereau. Era natural então, para ele, entrar na corrida louca de
Elektra, a mulher cujo grito é um canto”. Se lemos a homenagem que
Brigitte Jacques-Wajcman endereçou à Chereau no Lacan, Cotidiano, não
podemos pensar que ele não a fez deliberadamente.
Se fosse um filme seria Cidadão Kane de Orson Welles, pela última palavra que pronuncia Kane antes de morrer: “Rosebud”.
Qual é o trauma secreto que vem assim se nomear? É o que um critico do
filme americano chamou “o maior segredo do cinema”. Welles considerava
que ele tinha feito tudo para - esvaziá-lo de sentido. «We did everything we could to take the mickey out of it ».
Resta esta pura letra “Rosenbud”. De onde ela vem?
Entre todas as respostas propostas e que o artigo de Wikipedia condensa
muito bem, dois se destacam. Em seu livro de 2002, Hearst Over Hollywood,
Louis Pizzitola relata que era o apelido dado à mãe de Hearst pelo
filho de um casal de amigos íntimos daquela e rival em seu coração de
seu próprio filho. Gore Vidal, sempre bem informado dessas coisas,
declarou que Rosebud era o apelido dado por Hearst ao clitoris
de sua amante, Marion Davies. O que foi confirmado por outros. Então:
traumatismo da mãe ou da mulher, no que acreditar? Nos dois.
Se fosse uma peça poderia ser “Os espectros” de Henrik Ibsen.
Lemos aí o traumatismo das teorias da hereditariedade científica do fim
do século, soberbamente expostas. Os espectros em questão são as aves
da desgraça que se fundam sobre uma família decomposta quando todo o
discurso está deslocado. No nível dos servos, um pai quer prostituir sua
filha, mas em uma casa de repouso para marinheiros dignos. No nível
dos mestres, o pai morto teve uma criança com a empregada, que se
torna- dama de companhia da mãe, e o filho da família retorna de uma
longa temporada no estrangeiro, de onde ele fugiu e contraiu sífilis,
para querer se casar com ela. O pastor desconsidera todos esses segredos
uma vez que ele está no coração da intimidade da família e é um antigo
amante da mãe. A fogueira das vaidades consome a riqueza e as boas
intenções da herança deixada pelo pai no incêndio do hospício. E no ano
anterior, Thomas Ostermeier dirige a cena da morte do filho nos braços
da mãe como um eco à morte incestuosa da mãe no “Minha mãe” de George
Bataille.
Tradução: Cristiana Pittella de Mattos
Revisão: Maria Rita Guimarães
Tradução: Cristiana Pittella de Mattos
Revisão: Maria Rita Guimarães
Os mais sinceros agradecimentos a Éric Laurent pela autorização concedida a CIEN Digital para a publicação do presente trabalho.
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Notas:
1 NT:
Michel Leiris, no conto “A Regra do Jogo” narra sua experiência na
infância ao emitir das entranhas, como riso ou grito: “reusement”. Essa
jaculação vem marcar a primeira lembrança de sua vida e marca sua
relação à felicidade ou mais exatamente sua relação à infelicidade. Um
de seus brinquedos cai, um soldado de chumbo ou de papel mache.
Rapidamente ele o pega e para sua alegria não tinha quebrado, ele então
exclama: “reusement”! Alguém mais velho retruca: não se diz “reusement”
se diz “heureusement”. Nesse momento sua alegria é cortada, fica pasmo e
entregue a uma espécie de vertigem.
2 NT: Clássico da literatura libertina de Chordelos de Laclos, As ligações Perigosas
FROM: http://www.institutopsicanalise-mg.com.br/ciendigital/index.html
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