O-ô mã-ã-e que-ri-i-i-da
(In) atualidade ardente. Crônica de Nathalie Georges-Lambrichs
«A maior parte do tempo, ele nada comprava e, contudo, seus jornais cheiravam a peixe.» Tom Lanoye, La langue de ma mère (1)
A todos aqueles que acreditam que a Bélgica não existe, ou que não sabem que ela existe, eu recomendo descobrir os livros de Tom Lanoye. É um caso que demonstra como a alitteratura, que se supõe dever exilar-se para reunir-se, além da rota Eupen–Open, a seu país de escolha, está ancorada no país silencioso dos pintores e dos místicos, à sombra dos quais prospera, e como.
É preciso dizer que esse Belga é um Flamand, o que explica o forte odor de belgitude desinibida e truculenta que impregna a tradução francesa. Porque Tom Lanoye é um escritor popular. O pendant de Marguerite Duras, de algum modo (eu deixo meu colete à prova de balas). Uma Marguerite que como o flamengo, não sofreria a segunda mutação linguística, decisiva, aquela que imprime ao alemão seu refinamento, e que, em lugar de se desfolhar em longos soluços de violinos, só poderia escrever de um modo, numa prosa sangrenta e pingando, para desgosto de seus primos do outro lado.
E eis que desta língua, Tom Lanoye tem a audácia de fazer um personagem, e que personagem!
Uma mãe, e que mãe! A sua …
Essa língua é total e unicamente sua própria mãe, sua mãe em todas as suas formas, tão numerosas, que esse astro maneja como ninguém o espanador, e partilha seus raios no meio do lar doméstico; o matadouro doméstico e a cena de um teatro amador; jamais se deita, sempre ativa, a vigiar, censurar, acolher seus vizinhos e próximos com seus comentários e sentenças, revestindo o menor de seus gestos, cada uma de suas atividades, com fórmulas gravadas a cinzel, e servindo suas máximas de modo incisivo, urbi et orbi (para Roma e para o mundo).
Não contente em fazer ressoar sua voz e sua marca no ambiente, em imprimir o selo de sua impensável mortalidade e de sua eternidade divina, sobre as frágeis paredes timpânicas de sua prole, como um exército saído de seu encéfalo incomparável, emparelhada a seu marido açougueiro. tão bem ou melhor que a seu próprio corpo majestoso, e no entanto trivial, sem vergonha de tê-lo, e companheira de um e outro ao longo de décadas. Casualmente, e não menos a cada minuto de cada manhã, desse mundo criado por Deus, amassando sem hesitar a carne de seus pequenos, enfim, vivendo totalmente sua fartura e seu dinheiro, eis que, subitamente, cai.
Ela.
Ela.
Ela que.
Que domina o fogo, colocando-o no lago, para ter mais certeza de vencê-lo, queima-se mais gravemente que qualquer um, para mais segurança e para que ninguém ignore isso.
Que cumpre a promessa ou a proeza de viver no fio dos trabalhos e dos dias, para a edificação de todos e daquele, o filho mais novo, que sob o golpe inesperado, não é mais do que uma chama ou uma poça, uma fúria solta, uma insuportável resignação, que deve ser reabsorvida, e ele a usará como matéria vibratória, para abalar as fundações do ser que ela foi e ainda é, para fazê-lo mostrar, e pode-se dizer, a única homenagem digna de uma mortal que sabia não sê-lo totalmente. Dócil em transmitir a língua, amorosa ardente do pequeno veículo capaz de esclarecer o sétimo céu com as negras tintas do trigésimo sexto abaixo.
«A cada um seu coágulo e nós nos tornamos estranhos como nunca. Cortados de tudo o que tem relação com a língua», ele escreve, conjurando sua dor, fundindo-a e fazendo-a escorrer num movimento contrário, ecoando e sempre recomeçando. Como ele tem razão em não nos dar nenhum detalhe desses dois anos, nos quais a dor perseguiu o sofrimento, para instalar no coração do cotidiano, a estranheza que é a de perder alguém que ainda está lá, e não mais responde ao que era. Um cérebro, «essa couve-flor úmida e cinza» (p. 177) tomou a tangente e deixou seu proprietário de lado. A ruptura consome o tempo necessário, aos próximos muito próximos, para se fazer a ausência.
«Às vezes "menos" é simplesmente "menos". Naturalmente, irreparavelmente predeterminado e irrevogavelmente marcado a ferro, eu sou o descendente, imagem de uma cultura. Mas mesmo com toda honestidade, "menos" é uma mentira. "Menos" é uma construção de covardia, de falsidade, de kitsch minimalista» (p. 301).
Não se resume La langue de ma mère, nós o lemos e entramos na comunidade de leitores que se contam em centenas e centenas de milhares, num país onde os editores são modestos e desconhecidos. Não como do outro lado de onde eu escrevo, caros ex-compatriotas, onde é preciso empurrar a porta do Centro de Wallonie perto de Beaubourg, para aceder a uma verdade bastante esquecida, a saber que, «na França, um escritor em dois é Belga».
«E não é por nada que se nomeia pátria o país do pai e língua materna a da mãe» (p. 170).
Todo Tom Lanoye está nesse equívoco, que tem a arte de fazer de uma língua o equivalente de um país, abrangendo uma pátria estranha. E é daí que ele sabe fazer brotar os espectros encarnados, prontos para diminuir a tensão, e pouco inclinados a desaparecer.
E eis que desta língua, Tom Lanoye tem a audácia de fazer um personagem, e que personagem!
Uma mãe, e que mãe! A sua …
Essa língua é total e unicamente sua própria mãe, sua mãe em todas as suas formas, tão numerosas, que esse astro maneja como ninguém o espanador, e partilha seus raios no meio do lar doméstico; o matadouro doméstico e a cena de um teatro amador; jamais se deita, sempre ativa, a vigiar, censurar, acolher seus vizinhos e próximos com seus comentários e sentenças, revestindo o menor de seus gestos, cada uma de suas atividades, com fórmulas gravadas a cinzel, e servindo suas máximas de modo incisivo, urbi et orbi (para Roma e para o mundo).
Não contente em fazer ressoar sua voz e sua marca no ambiente, em imprimir o selo de sua impensável mortalidade e de sua eternidade divina, sobre as frágeis paredes timpânicas de sua prole, como um exército saído de seu encéfalo incomparável, emparelhada a seu marido açougueiro. tão bem ou melhor que a seu próprio corpo majestoso, e no entanto trivial, sem vergonha de tê-lo, e companheira de um e outro ao longo de décadas. Casualmente, e não menos a cada minuto de cada manhã, desse mundo criado por Deus, amassando sem hesitar a carne de seus pequenos, enfim, vivendo totalmente sua fartura e seu dinheiro, eis que, subitamente, cai.
Ela.
Ela.
Ela que.
Que domina o fogo, colocando-o no lago, para ter mais certeza de vencê-lo, queima-se mais gravemente que qualquer um, para mais segurança e para que ninguém ignore isso.
Que cumpre a promessa ou a proeza de viver no fio dos trabalhos e dos dias, para a edificação de todos e daquele, o filho mais novo, que sob o golpe inesperado, não é mais do que uma chama ou uma poça, uma fúria solta, uma insuportável resignação, que deve ser reabsorvida, e ele a usará como matéria vibratória, para abalar as fundações do ser que ela foi e ainda é, para fazê-lo mostrar, e pode-se dizer, a única homenagem digna de uma mortal que sabia não sê-lo totalmente. Dócil em transmitir a língua, amorosa ardente do pequeno veículo capaz de esclarecer o sétimo céu com as negras tintas do trigésimo sexto abaixo.
«A cada um seu coágulo e nós nos tornamos estranhos como nunca. Cortados de tudo o que tem relação com a língua», ele escreve, conjurando sua dor, fundindo-a e fazendo-a escorrer num movimento contrário, ecoando e sempre recomeçando. Como ele tem razão em não nos dar nenhum detalhe desses dois anos, nos quais a dor perseguiu o sofrimento, para instalar no coração do cotidiano, a estranheza que é a de perder alguém que ainda está lá, e não mais responde ao que era. Um cérebro, «essa couve-flor úmida e cinza» (p. 177) tomou a tangente e deixou seu proprietário de lado. A ruptura consome o tempo necessário, aos próximos muito próximos, para se fazer a ausência.
«Às vezes "menos" é simplesmente "menos". Naturalmente, irreparavelmente predeterminado e irrevogavelmente marcado a ferro, eu sou o descendente, imagem de uma cultura. Mas mesmo com toda honestidade, "menos" é uma mentira. "Menos" é uma construção de covardia, de falsidade, de kitsch minimalista» (p. 301).
Não se resume La langue de ma mère, nós o lemos e entramos na comunidade de leitores que se contam em centenas e centenas de milhares, num país onde os editores são modestos e desconhecidos. Não como do outro lado de onde eu escrevo, caros ex-compatriotas, onde é preciso empurrar a porta do Centro de Wallonie perto de Beaubourg, para aceder a uma verdade bastante esquecida, a saber que, «na França, um escritor em dois é Belga».
«E não é por nada que se nomeia pátria o país do pai e língua materna a da mãe» (p. 170).
Todo Tom Lanoye está nesse equívoco, que tem a arte de fazer de uma língua o equivalente de um país, abrangendo uma pátria estranha. E é daí que ele sabe fazer brotar os espectros encarnados, prontos para diminuir a tensão, e pouco inclinados a desaparecer.
Nota:
(1) Lanoye T., La langue de ma mère, éd. de la Différence, Paris, 2011.
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(1) Lanoye T., La langue de ma mère, éd. de la Différence, Paris, 2011.
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Da utilidade das ficções, por Jeanne Joucla
Une enfance de rêve (1), o último livro de Catherine Millet, lê-se de um só fôlego. Somos capturados, siderados, pela leitura dessas 280 páginas nas quais a franqueza da autora só se iguala a seu talento em ressuscitar em torno de lembranças factuais, toda a gama de cores das impressões e emoções que acompanharam sua infância e sua adolescência.
Une enfance de rêve chega facilmente à altura de obras-chave que são Si le grain ne meurt de André Gide ou Les mots de Jean-Paul Sartre. Com sua infância contada por eles mesmos, o destino desses grandes homens se encontra, sabe-se, como esclarecidos do interior.
Assim é com a diretora da Art press que nos entrega alguns momentos-chave da « composição do sujeito » como soube tão bem falar Lacan.
A temporalidade do relato empresta um vai e vem, entre a mais tenra idade e a juventude … Vemos aí, a mesma subversão do tempo encontrada nas seções de psicanálise, experiência que atravessa a autora. Não é o tempo do calendário que conduz a escritura de Catherine Millet, mas sobretudo impressões, em germe e muito precocemente, que encontraram para se desenvolver, depois a se inscrever, logicamente, no sujeito adulto. Ou ainda, como suas « ficções íntimas » se depositaram ou não, dependendo dos eventos.
Ironia do título, não é sonhando - mais exatamente devaneando - que a criança Catherine resiste valentemente aos ecos quase cotidianos do desacordo entre seus pais?
Não seria a leitura, propícia a se distanciar do cotidiano, que lhe abre outros horizontes que aqueles que lhe haviam sido prometidos ?
Não será esta capacidade de se «desdobrar» como a autora o sublinha, que permite à criança não ser devastada pela loucura materna?
«A ficção tinha a função de um esconderijo que eu levava comigo, como a tartaruga leva a carapaça que a protege»(2), escreve Catherine Millet, encadeando com o estado no qual, acamada devido a alguma doença infantil, «sem qualquer resistência», ela enriquece com detalhes e imagens mentais, os barulhos ou conversas que lhe chegavam da cozinha: «Eu me abria para a consciência reconfortante, requintada, de ser absolutamente eu (moi), distinta dos outros.»(3)
Em contraponto a esta emergência da consciência de si, é aquela de uma angústia de morte tenaz que nos narra C. Millet : a contingência de uma leitura, Contes et légendes du Moyen Âge français e seus heróis desaparecidos, deixa a menina «sob o império de imagens […] crepusculares […] e de histórias capturadas num clima pesado de fatalidade.» (4) Pouco tempo depois, em seguida a um incidente ocorrido durante uma disputa com seu irmãozinho - a tesoura raspando-lhe a garganta – ela desfalece: «Alguma coisa tinha acontecido num lugar do qual eu estava ausente […] Eu estive no coração de um evento incompreensível […] Nas semanas seguintes eu me pus a falar da morte com insistência. […] Eu vivia também num estado de alerta permanente que me isolava dos outros.»(5) Esse medo, nos diz C. Millet, «penetrou numa profundidade tal, onde ficou entrincheirado»(6).
Catherine conversa com Deus. Seu gosto pelo saber acaba, entre outros, por florescer nas lições de catecismo qualificadas como alegres e entusiasmantes; bem menos os encontros com os abades e outros confessores que «fazendo parte dessas figuras de autoridade às quais as crianças não dão qualquer crédito […] o que não era muito grave, porque eu me arranjava bem melhor diretamente com Deus»(7). Assim foi sob o olhar de Deus «que tudo vê», que na hora de dormir « os pensamentos que me haviam agitado ou as questões que se apresentaram a mim durante o dia, inscreviam-se em minha cabeça tão claramente quanto as linhas de escritura das páginas quadriculadas de meus cadernos, e Deus, portanto, podia lê-las.» (8) Esse monólogo ao entardecer podia ser entrecortado por imagens clandestinas, ligadas à descoberta subreptícia de uma atividade masturbatória, imaginária, onde se ancorariam os fantasmas ulteriores.
Quais palavras ou imagens influenciarão a menina? Umas disputam com as outras o primeiro lugar. As «impressões» deixadas pelas leituras ou os filmes, tinham a particularidade de serem como que «transpostas» para a vida corrente e vice versa: «Um mesmo continuum englobava [os] relatos que eu lia, as histórias que me mantinham em suspense diante da tela da televisão, minha vida como eu a vivia e minha vida futura, que eu encarava com a mesma confiança que todo o resto». (9)
O que a autora chama sua vida «desdobrada», longe de «ausentar-se do mundo para encontrar um mundo imaginário [suposto], ao contrário, colocou-a hiperpresente no mundo, sensível ao menor detalhe que o constitui» (10). É assim que no acme de uma terrível crise materna, que nós não desvelaremos aqui, Catherine, espectadora, movia-se «já no relato da cena […]. O olhar se fixa sobre o visível para permitir à consciência esquivar-se; não se pode estar presente no interior de uma imagem» (11).
Flash back sobre uma infância, o relato de Catherine Millet, esclarece o que ela fez de sua vida, esclarece também a nós leitores, sobre a nossa.
Notas:Une enfance de rêve (1), o último livro de Catherine Millet, lê-se de um só fôlego. Somos capturados, siderados, pela leitura dessas 280 páginas nas quais a franqueza da autora só se iguala a seu talento em ressuscitar em torno de lembranças factuais, toda a gama de cores das impressões e emoções que acompanharam sua infância e sua adolescência.
Une enfance de rêve chega facilmente à altura de obras-chave que são Si le grain ne meurt de André Gide ou Les mots de Jean-Paul Sartre. Com sua infância contada por eles mesmos, o destino desses grandes homens se encontra, sabe-se, como esclarecidos do interior.
Assim é com a diretora da Art press que nos entrega alguns momentos-chave da « composição do sujeito » como soube tão bem falar Lacan.
A temporalidade do relato empresta um vai e vem, entre a mais tenra idade e a juventude … Vemos aí, a mesma subversão do tempo encontrada nas seções de psicanálise, experiência que atravessa a autora. Não é o tempo do calendário que conduz a escritura de Catherine Millet, mas sobretudo impressões, em germe e muito precocemente, que encontraram para se desenvolver, depois a se inscrever, logicamente, no sujeito adulto. Ou ainda, como suas « ficções íntimas » se depositaram ou não, dependendo dos eventos.
Ironia do título, não é sonhando - mais exatamente devaneando - que a criança Catherine resiste valentemente aos ecos quase cotidianos do desacordo entre seus pais?
Não seria a leitura, propícia a se distanciar do cotidiano, que lhe abre outros horizontes que aqueles que lhe haviam sido prometidos ?
Não será esta capacidade de se «desdobrar» como a autora o sublinha, que permite à criança não ser devastada pela loucura materna?
«A ficção tinha a função de um esconderijo que eu levava comigo, como a tartaruga leva a carapaça que a protege»(2), escreve Catherine Millet, encadeando com o estado no qual, acamada devido a alguma doença infantil, «sem qualquer resistência», ela enriquece com detalhes e imagens mentais, os barulhos ou conversas que lhe chegavam da cozinha: «Eu me abria para a consciência reconfortante, requintada, de ser absolutamente eu (moi), distinta dos outros.»(3)
Em contraponto a esta emergência da consciência de si, é aquela de uma angústia de morte tenaz que nos narra C. Millet : a contingência de uma leitura, Contes et légendes du Moyen Âge français e seus heróis desaparecidos, deixa a menina «sob o império de imagens […] crepusculares […] e de histórias capturadas num clima pesado de fatalidade.» (4) Pouco tempo depois, em seguida a um incidente ocorrido durante uma disputa com seu irmãozinho - a tesoura raspando-lhe a garganta – ela desfalece: «Alguma coisa tinha acontecido num lugar do qual eu estava ausente […] Eu estive no coração de um evento incompreensível […] Nas semanas seguintes eu me pus a falar da morte com insistência. […] Eu vivia também num estado de alerta permanente que me isolava dos outros.»(5) Esse medo, nos diz C. Millet, «penetrou numa profundidade tal, onde ficou entrincheirado»(6).
Catherine conversa com Deus. Seu gosto pelo saber acaba, entre outros, por florescer nas lições de catecismo qualificadas como alegres e entusiasmantes; bem menos os encontros com os abades e outros confessores que «fazendo parte dessas figuras de autoridade às quais as crianças não dão qualquer crédito […] o que não era muito grave, porque eu me arranjava bem melhor diretamente com Deus»(7). Assim foi sob o olhar de Deus «que tudo vê», que na hora de dormir « os pensamentos que me haviam agitado ou as questões que se apresentaram a mim durante o dia, inscreviam-se em minha cabeça tão claramente quanto as linhas de escritura das páginas quadriculadas de meus cadernos, e Deus, portanto, podia lê-las.» (8) Esse monólogo ao entardecer podia ser entrecortado por imagens clandestinas, ligadas à descoberta subreptícia de uma atividade masturbatória, imaginária, onde se ancorariam os fantasmas ulteriores.
Quais palavras ou imagens influenciarão a menina? Umas disputam com as outras o primeiro lugar. As «impressões» deixadas pelas leituras ou os filmes, tinham a particularidade de serem como que «transpostas» para a vida corrente e vice versa: «Um mesmo continuum englobava [os] relatos que eu lia, as histórias que me mantinham em suspense diante da tela da televisão, minha vida como eu a vivia e minha vida futura, que eu encarava com a mesma confiança que todo o resto». (9)
O que a autora chama sua vida «desdobrada», longe de «ausentar-se do mundo para encontrar um mundo imaginário [suposto], ao contrário, colocou-a hiperpresente no mundo, sensível ao menor detalhe que o constitui» (10). É assim que no acme de uma terrível crise materna, que nós não desvelaremos aqui, Catherine, espectadora, movia-se «já no relato da cena […]. O olhar se fixa sobre o visível para permitir à consciência esquivar-se; não se pode estar presente no interior de uma imagem» (11).
Flash back sobre uma infância, o relato de Catherine Millet, esclarece o que ela fez de sua vida, esclarece também a nós leitores, sobre a nossa.
1 Catherine Millet, Une enfance de rêve, Flammarion, 2014.
2 Ibid., p. 1193 Ibid., p. 123.
4 Ibid., p. 126.
5 Ibid., p. 130.
6 Ibid., p. 133.
7 Ibid., p. 138.
8 Ibid., p. 161.
9 Ibid., p. 251.
10 Ibid., p. 253.
11 Ibid., p. 263.
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«Não se é sério quando se tem dezessete anos» (1) por Célia Breton
Quando Lacan trabalha a parada freudiana relativa à categorização da feminilidade, abre o campo às possibilidades do que é uma mulher. Da exceção à lógica fálica, responde uma posição em deriva da universalidade, que se junta às arquiteturas fantasmáticas de cada época. Um passeio pelo último longa metragem de François Ozon, permite ilustrar o retrato de duas mulheres marcadas pela ligação filial, de acordo com uma possível apresentação da modernidade. Via objeto olhar, difratando-se em múltiplas focalizações, esse filme figura o enigma da feminilidade, guiada pela iteração do gozo, prendendo os parceiros à radicalidade de sua solidão.
Ser jovem e bonita conduz Isabelle, dezessete anos, ao terreno do «jogo perigoso» da prostituição, para tratar a coisa sexual. Para F. Ozon, trata-se de capturar a especificidade da relação, que Isabelle mantém com seu corpo – em seu apego aos corpos dos homens – desde o primeiro idílio, confrontando a atriz com a relação sexual que não existe. Esse encontro faltoso ecoa sobre o corpo tomado como objeto, nascido do jogo perigoso da prostituição à qual se presta Isabelle sob a máscara de Léa, à saída do liceu. O meio escolhido pela direção através do desvelamento operado pelo objeto da pulsão escópica, guia ao mais íntimo dos personagens. Com as tintas de um véu de erotismo, os gozos individuais são estudados por meio dos efeitos de gozo que agitam a todos e a cada um. E a encenação está dirigida sobre as aventuras tarifadas de Isabelle: ao prazer ou a seu avesso, que se poderia supor, se substituem as cenas repetidas, das quais o sujeito parece estar ausente. A câmera subtrai os traços impassíveis da atriz, simultaneamente, parte interessada na ação e espectadora de si mesma.
Quando Lacan trabalha a parada freudiana relativa à categorização da feminilidade, abre o campo às possibilidades do que é uma mulher. Da exceção à lógica fálica, responde uma posição em deriva da universalidade, que se junta às arquiteturas fantasmáticas de cada época. Um passeio pelo último longa metragem de François Ozon, permite ilustrar o retrato de duas mulheres marcadas pela ligação filial, de acordo com uma possível apresentação da modernidade. Via objeto olhar, difratando-se em múltiplas focalizações, esse filme figura o enigma da feminilidade, guiada pela iteração do gozo, prendendo os parceiros à radicalidade de sua solidão.
Ser jovem e bonita conduz Isabelle, dezessete anos, ao terreno do «jogo perigoso» da prostituição, para tratar a coisa sexual. Para F. Ozon, trata-se de capturar a especificidade da relação, que Isabelle mantém com seu corpo – em seu apego aos corpos dos homens – desde o primeiro idílio, confrontando a atriz com a relação sexual que não existe. Esse encontro faltoso ecoa sobre o corpo tomado como objeto, nascido do jogo perigoso da prostituição à qual se presta Isabelle sob a máscara de Léa, à saída do liceu. O meio escolhido pela direção através do desvelamento operado pelo objeto da pulsão escópica, guia ao mais íntimo dos personagens. Com as tintas de um véu de erotismo, os gozos individuais são estudados por meio dos efeitos de gozo que agitam a todos e a cada um. E a encenação está dirigida sobre as aventuras tarifadas de Isabelle: ao prazer ou a seu avesso, que se poderia supor, se substituem as cenas repetidas, das quais o sujeito parece estar ausente. A câmera subtrai os traços impassíveis da atriz, simultaneamente, parte interessada na ação e espectadora de si mesma.
Em suas pontuações narrativas, Isabelle deixa ouvir a singularidade do que a anima – reduzida num determinado tempo a um resto que aflora com o nome de Léa. O desenvolvimento da repetição toma seu sentido na necessidade que implica para ela, o apropriar-se da maneira como se pode gozar do corpo de um homem, a fim de que a demanda do outro não cesse, e que dê lugar a novos encontros.
Paralelamente, a direção cinematográfica isola as modalidades de união de Isabelle e sua mãe, sob o ângulo da imagem especular. A escansão de uma contingência trágica de travessuras de Isabelle terá por função polarizar a fratura geracional, confrontando-as com o insuportável do espelho, ao qual elas retornam. É exilada do íntimo de sua filha, que a mãe vai tentar cortar a satisfação solitária de Isabelle, desdobrando uma enxurrada de palavras emprestando afeto.
Paralelamente, a direção cinematográfica isola as modalidades de união de Isabelle e sua mãe, sob o ângulo da imagem especular. A escansão de uma contingência trágica de travessuras de Isabelle terá por função polarizar a fratura geracional, confrontando-as com o insuportável do espelho, ao qual elas retornam. É exilada do íntimo de sua filha, que a mãe vai tentar cortar a satisfação solitária de Isabelle, desdobrando uma enxurrada de palavras emprestando afeto.
Em contraste, a resposta se faz silenciosa ou ecoa sobre o «puta», a partir do qual a mãe terá que apreender o lugar que se atribui a filha. De fato, a introdução do «psy» parece constituir a única saída materna, quando o mal-entendido se torna gritante. Selado de um impossível, a vontade de querer nomear o não senso da pulsação corporal de Isabelle, conduz sua mãe a enfrentar a realidade de seu próprio desejo. Porque, para a jovem mulher, trata-se de não se deixar despossuir da mestria adquirida nas particularidades do gozo : simetricamente, num trabalho de desnudar os semblantes. Compreender a facilidade com a qual é possível mentir sobre sua idade, é um modo de manejar os semblantes, para melhor fazê-los cair. Da mesma maneira, quando lhe confia que conhece a natureza de sua relação extraconjugal, Isabelle pontua que o desejo nuançado de anticonformismo, está também do lado de sua mãe. Ser mãe, nesse cenário, é experimentando então do lado do ser da mulher, porque essa é a questão do ponto de gozo feminino que é interrogado e levado a vacilar.
Habilmente, o cenário orienta a compreensão sobre um além da configuração edipiana – o discurso da heroína inscrevendo-se num quadro que derroga os códigos tradicionais estabelecidos. E o que faz a singularidade da posição da jovem põe em jogo o dispositivo do encontro, além do encontro ele mesmo. Alguns falarão de perversão sobre a denúncia do ponto de gozo do outro operado pela adolescente.
Habilmente, o cenário orienta a compreensão sobre um além da configuração edipiana – o discurso da heroína inscrevendo-se num quadro que derroga os códigos tradicionais estabelecidos. E o que faz a singularidade da posição da jovem põe em jogo o dispositivo do encontro, além do encontro ele mesmo. Alguns falarão de perversão sobre a denúncia do ponto de gozo do outro operado pela adolescente.
Se nos mantivermos à especificidade «lúdica» enunciada nesse filme, isso confina com uma tendência classificatória, do lado do nascimento da angústia com o semelhante. Ora, por suas passagens ao ato, não é o desejo de gozar da divisão de seus parceiros que predomina. Ao contrario, o diretor mostra de que maneira o prazer do outro constitui um apoio, para capturar um gozo inapto a encontrar limite na realização do orgasmo. Encarnar o objeto com o qual o outro pode se satisfazer sexualmente, permite vislumbrar algo de sua posição sintomática sobre a vertente do gozo sacrificial.
A partir daí, a experiência de um savoir-faire a conduz de um estatuto passivo – sofrendo o ato sexual – a uma identidade de parceiro de gozo, onde o olhar se torna abertura sobre o índice do prazer. Jacques-Alain Miller lembrou recentemente como a metonímia podia ser interpretada como essencialmente não-edipiana(2). A repetição do encontro inscreve o desejo singular desta adolescente, situando-o numa lógica consumista.
Ser a mulher que faz gozar os homens torna-se o suporte a partir do qual se origina a atuação de cenários imaginários. Também, a partir de sua « frouxa ligação ao desejo », o jogo da heroína é um convite a apreender a singularidade do que orienta a figura de uma feminilidade contemporânea. Liberando-se do tratamento geralmente reservado a tal tema, o filme permite pensar sobre a consistência de um ser que só pode demandar ainda mais.
Notas:
1-. Rimbaud A., «Roman», in Poésies, Paris, Gallimard
1-. Rimbaud A., «Roman», in Poésies, Paris, Gallimard
2-. Miller J.-A., «Une réflexion sur l'Œdipe et son au-delà», Discurso de encerramento do PIPOL 6, (2013), texto estabelecido por Monique Kusnierek, http://www.amp-nls.org/page/fr/171/le-congrs-de-gand-2014/0/1187
Tradução: Maria Bernadette Soares de Sant'ana Pitteri
Tradução: Maria Bernadette Soares de Sant'ana Pitteri
Comunicação: Maria Cristina Maia Fernandes
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