O amor de transferência funda a realização mesma da operação
analítica[1]. Sem esse amor, o inconsciente não tem nenhuma chance de se
manifestar. O amor é, portanto, uma necessidade para se entrar na
experiência. É ele que permite a abertura do inconsciente com o
aparecimento dos sonhos, dos lapsos, dos esquecimentos, e da própria
interpretação que o analisante produz para nutrir o amor pelo
inconsciente.
Ora, nos diz J.-A. Miller, « o inconsciente transferencial é uma
defesa contra o real »[2], o que indica que esse amor permite, a uma só
vez, que a interpretação do inconsciente se constitua em saber, e
também, que seja o que vem colocar à distância o real. O que resta desse
amor, uma vez enxugados os acontecimentos transferenciais que tinham
lhe dado uma consistência real?
É pela repetição e pela inércia que se manifesta clinicamente o
real no tratamento. Alguma coisa não pode mudar; alguma coisa que dura,
que se choca ao fato de que a fala não tem efeitos sobre esse resto e,
nesse momento de análise, alguma coisa da crença no inconsciente se
rompe. Na transferência, o que sustentava o desejo e fazia consistir a
fineza do encontro entre significante e sentido, significante e gozo,
perde sua consistência. Mas, dependendo da manifestação de sua presença
ou não na transferência, os efeitos serão diferentes. Assim, parece-me
que, à facticidade do amor, deve advir a eficácia da presença – um dos
nomes do desejo do analista.
Na minha análise, eu sofri do encontro com o real da repetição
que tomou, no momento mais agudo de sua manifestação, a forma de uma
renúncia. Eu não encontrava saída para minha análise, como se eu devesse
ainda encontrar um sentido último ao que não cessava de me fazer falar,
não sobre o inconsciente, mas sobre o real que se impunha. Esperava um
apaziguamento que me indicaria uma solução ao meu percurso infinito.
Pois, a infinitização da análise dá um sentimento de fracasso da
análise, repetindo, então, o gozo que este fracasso era para mim. Tinha
conseguido fazer de minha análise um gozo com o fracasso, um gozo com o
fracasso « em branco » : interpretara meu analista, para fazer escutar o
equívoco, remetendo à posição do pai pronto a pagar por ela com um
cheque em branco, essa verdade do sintoma.
O analista, ele também, era impotente para me tirar desse
impasse. Eu o deixei quando, de maneira totalmente inesperada pois eu
não sonhava mais havia muito tempo, sobreveio um sonho que se escreve
com um nome próprio: Revol. O analista quer relançar à associação livre,
dizendo: « Revol ? » Mas eu lhe faço objeção, recusando. De fato, eu
dei um basta no sentido. Ali onde o analista pega rapidamente o
significante para me abrir ao equívoco desse significante, eu vejo
somente um relançamento da decifração e decido pará-lo, soltando o gozo
do equívoco, do qual eu fui uma adepta fervorosa.
Nesse momento, o analista não encarna mais o Sujeito Suposto
Saber, mas o real da psicanálise, como aquilo que produz apenas
repetição e que fixa o sujeito a seu ser, um ser de resto.
Foi bem mais tarde, numa sessão de supervisão, que eu alcançaria
pela primeira vez a função mesma dessa posição de resto. Falando de uma
mulher que se via como um dejeto, e desdobrando essa questão em
supervisão, o analista me diz ao final da sessão: «sim, há histéricas
que estão nessa posição de dejeto».
Tomo para mim a interpretação e decido, então, retomar minha análise.
O analista, através de sua interpretação, põe novamente a
trabalho o Sujeito Suposto Saber, não aquele do saber a decifrar, mas do
saber ler.
O amor é aí contingente. Certamente, ele é necessariamente
convocado nesse laço de amarração em que dizer ganha um valor decisivo.
Nessa retomada da análise, a transferência não é mais um obstáculo e a
questão do final de análise, que tinha preocupado tanto a ela, que tinha
tomado a consistência de uma parede intransponível, inicia-se,
quebra-se. Ela solta alguma coisa de seu ideal de conseguir. Ela não é
mais movida por um desejo de terminar sua análise e fazer o Passe. Essa
questão passa a atormentá-la menos, deixando-a, então, numa leveza maior
quanto ao seu desejo. Ela renunciou a encontrar a palavra final, ou a
obter « a satisfação final ». Ela faz a experiência que o analista,
longe de empurrá-la ao Passe, parece, ela acredita, não convocá-la a
isso. Ela fica, ao mesmo tempo, aliviada e um pouco culpada, pois, de
fato, ele encarna para ela aquele que detém o laço mais estreito com o
Passe e com a transmissão da psicanálise.
Sua transferência pela Escola encontra-se também mais leve. Ela
escuta de forma diferente os analistas que encarnavam para ela o saber
inalcançavél, e diz para si mesma que ela também pode ter alguma coisa a
dizer. Seu analista sustenta seus avanços nos trabalhos que apresenta.
Ela apreende, à medida que se implica na Escola, que sua relação
com a causa analítica está em ressonância com sua experiência da
análise.
Ela percebe que a transferência não está mais propriamente
orientada para o analista, mas que há uma parte dela que retorna sobre o
próprio sujeito, sobre a experiência real da análise. Há um retorno do
amor, como dizemos que há um retorno da experiência. É esse retorno do
amor pela análise que o fez resto inédito e invariável, e constitui um
rochedo sobre o qual se funda o desejo do analista. Há uma frase de
Lacan, de que gosto muito, que diz que « o que solda o analisante não é o
analista, mas o par analisante-analista »[3]. Quando nos separamos do
analista, nos separamos desse par aí. E, de fato, é este que retorna
quando se interrompe a análise antes de seu fim. O parceiro-analista é
fixado pelo fantasma do analisante. Quando ele muda, alguma coisa desse
par perdura. É por isso que mudar de analista não é necessariamente uma
solução para tratar o real da experiência. Mas às vezes essa mudança se
impõe e permite encontrar uma resposta e sair do impasse pelo qual nos
encontrávamos tomados.
Ora, parece-me que esse par não se desfaz jamais totalmente, uma
vez que vamos repeti-lo, mas de forma inversa, ao passar de analisante a
analista. E, quanto mais conseguimos nos destacar do par
analista-analisante, mais poderemos fazer semblante de objeto a para os
analisantes que veem se analisar conosco. Daí, essa separação do par
analista-analisante exige que se tenha desnudado as fixações imaginárias
do amor parental, que se tenha desenredado o amor pelo analista e, como
histérica, desamarrado a demanda de amor incondicional que se associa a
ela, para encontrar, no fim do caminho, um amor de transferência
despojado, liberado das aporias do afeto, e que esteja em consonância
com um amor sem esperança de cura, um amor incurável.
O amor de transferência é, portanto, o que não se liquida no
final da análise. É um resto vivo e motor do desejo do analista.
A todos aqueles « que lavam as mãos, distanciando de si a dita
transferência, recusando o surpreendente do acesso que ela oferece ao
amor, nós dizemos que eles são falsários da psicanálise. »[4].
Tradução Ana Paula Lorenzi
Notas:
1-. Trabalho apresentado em janeiro de 2014, na École de la Cause Freudienne, na noite em que os AEs foram convidados a falar sobre “O amor de transferência”, na atividade proposta por Bruno de Halleaux e animada por Anne Lysy, que gentilmente nos concederam a autorização publicar os textos apresentados pelos colegas. A eles nosso especial agradecimento.
2-. Miller, Jaques-Alain. « Le réel au XXI° siècle ». La cause du désir n°83. Paris: Navarin Editeur, 2012, p. 94.
3-. Lacan, Jacques. « A terceira ». In Opção lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n° 62, dez/2011, p. 19 [«La troisième », La cause du désir, n°79. Paris : Seuil, 2011, p.19].
4-. Lacan, Jacques. “O aturdito”. In Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 479 [Lacan, Jacques. « L’étourdit », In Autres écrits. Paris : Seuil, 2001, p. 478].
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