Confrontos de rua no Brasil, junho 2013 |
A situação política atual – e isto vale tanto para a política em geral quanto para a política da psicanálise – assiste ao confronto de duas concepções do tratamento do mal-estar na civilização: uma é socialmente dominante e aspira a uma visão totalitária das coisas humanas e a outra é resistente e se apoia sobre os desfuncionamentos, os fracassos.
Para Jacques-Alain Miller, trata-se aqui de opor ao princípio do “isso funciona”2, a lei do fracasso. No mundo psi,
em extensão constante, esta oposição pode tomar a forma da oposição
entre as terapias cognitivo-comportamentais e a psicanálise: as
primeiras, ocupadas com a gestão das massas pelo instrumental
estatístico, estão a serviço do mestre; a segunda, originada da lógica
significante em atividade nos sujeitos, tomados um por um, está a
serviço do sinthoma.
Esta oposição é geral e se encontra em todos os níveis das práticas
sociais. A psicanálise, no entanto, se localiza numa posição particular.
Com efeito, longe de desconhecer o poder das práticas de adaptação e de
mestria, estudou seus fundamentos, na medida em que, como disciplina, é
extraída da hipnose e da sugestão pela teorização dos fenômenos da
transferência. Este fundamento é uma das três dimensões que Lacan propõe
como coordenada do funcionamento psíquico: o imaginário. A orientação
analítica não se sustenta pela ignorância do poder das imagens, mas por
uma escolha ao mesmo tempo ética e pragmática.
O fator psi se transformou num elemento da política. Lacan o
assinala, de maneira quase visionária no seu texto de 1947, “A
psiquiatria inglesa e a guerra”, quando ele adianta: “[...] o
desenvolvimento que crescerá, neste século, dos meios de agir sobre o
psiquismo, e o manejo concertado das imagens e paixões do qual já se fez
uso com sucesso contra nosso julgamento, nossa resolução e nossa
unidade moral, darão ensejo a novos abusos do poder”3. Tal fator psi se
tornou político em todas as ramificações do laço social, a ponto de
tornar obsoleto o título inesquecível de Michel Foucault, Vigiar e punir4, o
qual convém hoje substituir pelo slogan: “cuidar e curar”, no qual se
pode colocar o recente relatório do INSERM sobre a criança turbulenta5.
A gestão das massas implica, estruturalmente, uma rejeição da diferença em termos de singularidade individual. Ela reabsorve a diferença no desvio em relação à norma que é definida pela média em termos de comportamento. A diferença, no sentido psicanalítico, ou seja, a diferença apreendida fora de toda perspectiva comparativa, a diferença pura, não é pertinente nesta ótica. Bem mais que isso, ela é odiada, pois ela traz em si a lei do fracasso, ela se enraíza efetivamente no fracasso fundamental do sujeito falante, ou seja, no fracasso da relação. Não é possível falar de diferença – a pequena como as grandes – sem que se introduza, depois se exponha, esta especificidade do falasser que é a não-relação, sexual e geral. Ora, o discurso do mestre, como aliás o do inconsciente, quer a relação entre os falasseres, ou melhor, ele quer hoje uma relação equitativa, igualitária e comunitária. A relação implica não somente a classe, isto é, o compartimento, mais além disso, ela gera o sentido, o bom, se possível. A psicanálise permite saber que a estrutura de uma tal relação reconduz implacavelmente à lógica do semelhante, do duplo, dito de outro modo, do imaginário. Por isso, seria a mesma coisa opor ao ódio à diferença o amor à diferença, num angelismo que tanto a clínica psicanalítica como a disciplina da história desmentem e demonstram sempre a ferocidade segregacionista.
A gestão das massas implica, estruturalmente, uma rejeição da diferença em termos de singularidade individual. Ela reabsorve a diferença no desvio em relação à norma que é definida pela média em termos de comportamento. A diferença, no sentido psicanalítico, ou seja, a diferença apreendida fora de toda perspectiva comparativa, a diferença pura, não é pertinente nesta ótica. Bem mais que isso, ela é odiada, pois ela traz em si a lei do fracasso, ela se enraíza efetivamente no fracasso fundamental do sujeito falante, ou seja, no fracasso da relação. Não é possível falar de diferença – a pequena como as grandes – sem que se introduza, depois se exponha, esta especificidade do falasser que é a não-relação, sexual e geral. Ora, o discurso do mestre, como aliás o do inconsciente, quer a relação entre os falasseres, ou melhor, ele quer hoje uma relação equitativa, igualitária e comunitária. A relação implica não somente a classe, isto é, o compartimento, mais além disso, ela gera o sentido, o bom, se possível. A psicanálise permite saber que a estrutura de uma tal relação reconduz implacavelmente à lógica do semelhante, do duplo, dito de outro modo, do imaginário. Por isso, seria a mesma coisa opor ao ódio à diferença o amor à diferença, num angelismo que tanto a clínica psicanalítica como a disciplina da história desmentem e demonstram sempre a ferocidade segregacionista.
Isto justifica que nós proponhamos a expressão “amor ao sintoma”, que vamos agora desdobrar.
Do sintoma ao sinthoma
O sintoma está no coração da experiência analítica de muitas maneiras.
Em primeiro lugar, no nível fenomenológico: as pessoas que vêm consultar um psi –
psicanalista ou outro –, começam por fazer dele o tema de sua queixa, a
origem e a causa de seu sofrimento em viver. Eles vêm falar disso com
urgência, uma urgência desconhecida por eles mesmos. Num segundo tempo,
aparece manifestamente que elas o amam, talvez mais que a elas mesmas, e
que o sintoma, por ser apresentado como um problema, não deixa de ser
para o sujeito também uma solução. Ele dá sentido e justificação ao modo
de vida do sujeito. Estudos americanos em psiquiatria mostraram, por
exemplo, que os sujeitos com alucinações, cujos tratamentos
medicamentosos os tinham livrado de suas vozes, arrependeram-se e as
preferiam à normalidade reencontrada.
Em segundo lugar, no nível estrutural: disso que é um fato da
experiência – os sujeitos amam seus sintomas –, a psicanálise faz
método. Posto que uma das formas de amor é um produto da experiência da
palavra, trata-se de deslocar este amor ao sintoma em direção àquele a
quem se fala, experiência que se produziu de forma inaugural, desde o
início do tratamento da histeria com Sigmund Freud e Joseph Breuer. Uma
segunda forma do sintoma pode então aparecer: aquela de um saber
enigmático, decifrável pela disciplina do significante. Em termos de
álgebra lacaniana, o S1 é separado do objeto a. A parte de gozo
do sintoma é momentaneamente retirada. Ele pode, então, ser nomeado
pelo sujeito, o que lhe suprime seu poder de ordenação do Outro ao qual o
sujeito era correlato. Esta operação dá conta dos efeitos terapêuticos
da análise. Como indica J-A. Miller, a descoberta ou mesmo a invenção,
por Freud, do sintoma histérico se fez no contexto o discurso da ciência
que propõe a existência de um real, mostrando que há sentido no real:
“O sentido no real é o suporte do ser do sintoma, no sentido analítico.
[...] No fundo, aceitou-se o S2 freudiano, ou seja, o sentido
associativo ao lado do sentido imperativo [...]”6. O sintoma analítico se define então como uma cadeia de significantes ordenada pela lógica da língua.
Não é portanto ainda isso que Lacan introduz, no seu Seminário 23, com o termo sinthoma. Com efeito, hoje “produziu-se uma cisão do real e do sentido”7, cisão claramente percebida por Lacan nessa última parte de seu ensino e da qual resulta uma repartição das tarefas: ao real do sintoma, o medicamento; ao sentido, as terapias psis.
A psicanálise não é e nunca foi uma disciplina do sentido. É uma
disciplina do textual e da letra que tende, então, a transformar o
sintoma em um texto cifrando o gozo. O sinthoma é abordável a partir daí.
A diferença entre sintoma e sinthoma não se mantém nem pela
presença ou ausência de sentido – já que o sintoma, se ele dá sentido,
ele não o tem –, nem pela incidência do real – de retornar ao mesmo
lugar, o sintoma é da ordem do real. A diferença decorre do fato de que o
sintoma é sempre construído a partir da exigência de que no
inconsciente haja relação sexual. O sintoma tenta sempre escrever uma
relação no lugar de uma equivalência. Ele se situa então do lado da
necessidade. O sinthoma, ao contrário, é solidário da constatação do fato de que não há relação que
possa se escrever concernindo o gozo sexual para todo vivente
mergulhado na linguagem. Nisto, ele participa então da contingência e a
aplica ao próprio simbólico. Um nó não é uma cadeia e um S1 não é a
determinação da coisa.
As lições do Passe
A referência ao sinthoma permite sair de certas aporias no
tratamento analítico, tais como elas nos aparecem no laboratório de
clínica analítica que é o procedimento do Passe.
De início, a clínica do Passe mostrou, de maneira irrefutável, que era
impossível aos Cartéis produzir critérios, valendo para todo tratamento,
do fim de análise, como também da passagem à analista. Isso não quer
dizer que não se possa enunciar os elementos comuns a todos os
tratamentos ou indicar as constantes. Isso é possível porque a lista dos
fantasmas é limitada e o sintoma produzido sob transferência no
tratamento se constitui aí como saber transmissível. J.-A. Miller nos
convida a considerar que “[...] o inconsciente não existe. O
inconsciente primário não existe como saber. E para que se torne um
saber, para fazê-lo existir como saber, é preciso o amor”8.
Há então um saber possível que surge da decifração e da interpretação
na análise. Mas, no que concerne ao final de análise e à passagem à
analista, o Passe certifica um lugar onde a diferença se manifesta como
rebelde a todo método comparativo ou modelização única: uma diferença
pura que não é aprisionada na necessidade. O modelo seria melhor buscado
do lado do estudo feito por J-A. Miller do paradoxo lacaniano dos três
prisioneiros. A formulação do critério é aí impossível porque esta
passagem não depende apenas da cadeia significante. Ela traz a marca da
contingência e depende do ato e não da relação.
Além disso, uma questão permanecia em suspenso: nos testemunhos de
Passe, as lembranças de cena constituem frequentemente elementos chaves.
Esta presença rebelde da imagem, imagens diretas ou indiretas, em todo
caso indeléveis, não depende da relação especular e da estrutura dual do
semelhante. Portanto, colocá-las sob a categoria clínica da lembrança
encobridora e, consequentemente, nas formações do inconsciente, só
parece sustentável porque as cenas estariam submetidas ao tratamento da
lógica do significante, que rege o trabalho analítico de maneira global.
Elas guardam, no entanto, um caráter particular ligado à sua fixidez,
sem por isso depender da formulação da fantasia. Este traço de fixidez
se relaciona ao traço com o qual Lacan, na última parte de seu ensino,
caracteriza o imaginário, a saber, a consistência. Estas cenas, de uma
maneira ou de outra, implicavam um corpo.
O Seminário 23 permite fazer uma hipótese: esses elementos, cristais do imaginário, indeléveis ao processo analítico, conservando uma referência ao corpo e à sua imagem, não poderiam ser considerados como o núcleo do ego? Não se trata aí do “ego que corrige” 9, do qual Lacan fala a propósito da escrita para Joyce, mas do corpo tal como ele se situa em todo enodamento borromeano. Estas cenas, efetivamente, apresentam a imagem, o corpo, fora de toda perspectiva totalizante, mas, por outro lado, não sem relação com o circuito do gozo. Isto dá também uma pista para responder à questão do futuro do narcisismo num tratamento levado a seu termo.
Assim, “[...] com o último Lacan, nos vemos às voltas com três inconscientes, três modalidades diferentes do inconsciente”10, e o sinthoma deve ser considerado como o enodamento destes três inconscientes. O sinthoma é
o ego ou a metamorfose do narcisismo depois do esvaziamento do Eu Ideal
especular (consistência), a cadeia dos significantes-mestres (nomeação
que faz furo), e o objeto estigma, real de uma experiência de gozo (ex-sistência).
É por isso que, em vez de amor ao sintoma, como o sugeria nosso título e
que poderia se entender como uma eternização da transferência ou ainda
amor pelo inconsciente, nós preferimos amor ao sinthoma que, fazendo nó, faz também parada.
Levando em conta a “evaporação do pai”, hoje patente, a psicanálise
resiste à solução pelos irmãos, ou seja, ao aumento do ódio pela
diferença que subordina o laço social à segregação, preferindo o amor
ao sinthoma, o qual pode, na falta do pai, tratar o real. Trata-se então de amar “[...] o que há de mais singular em cada indivíduo [...]”11, sem esperança de relação.
Tradução: Lúcia Grossi
Revisão: Ana Paula Lorenzi
Notas:
1Texto publicado na revista La cause freudienne,
Paris, Navarin, n.62, traduzido ao português por Lúcia Grossi, revisado
por Ana Paula Lorenzi, e publicado neste Boletim com a autorização da
autora.
2MILLER, J.-A. Uma fantasia. In Opção lacaniana, São Paulo, Edições Eólia, n. 42, fev. 2005, p.11.
3LACAN, J. A psiquiatria inglesa e a guerra. In Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 125.
4FOUCAULT, M. Surveiller et punir. Paris: Gallimard, 1975.
5INSERM, Rapport troubles des conduites chez l’enfant et
l’adolescent, expertise collective Inserm Paris, 2005 (disponível em:
http://ist.inserm.fr/basisrapports/trouble_conduites/troubles_conduites_synthese.pdf
6MILLER, J.-A. Op. cit., p.15.
7Ibid., p.15.
8Ibid., p.18.
9LACAN, J. O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007, p. 148.
10MILLER, J.-A.. Op. cit., p.17.
11LACAN, J. Op. cit., p.163.
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From: esseOesse #7. http://www.encontrocampofreudiano.org.br/2014/07/o-amor-ao-sinthoma-contra-o-odio-da.html
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