“[O homem] quis pois criar o paraíso graças à farmácia, às bebidas fermentadas,
tal como um maníaco que substituísse móveis sólidos e jardins verdadeiros por
cenários pintados em tela e montados em armações”.
Charles Baudelaire (Les Paradis Artificiels, 1860).
A ausência de saber sobre a sexualidade resulta na existência do sintoma, que denuncia algo que resta incurável quanto ao gozo, impossível de normatizar, e razão pela qual fracassaram os Ideais de repressão apoiados no significante elementar de guerra às drogas. O momento atual é caracterizado por uma reviravolta da ordem simbólica e pelo fracasso dos Ideais. Diante da ausência de Ideais que impeçam o acaso de um encontro mais satisfatório, o sujeito põe em evidência a solidão da parceria com o mais-de-gozar na forma que lhe parece mais conveniente.
Mas há distinção entre a dimensão autista que se alcança ao final de uma análise, daquela que se apresenta nas ocasiões de intensa dedicação a uma parceria mortífera com o objeto causa de gozo. A desordem no real atinge os corpos através de sintomas que denotam um suicídio cotidiano, circunstâncias nas quais o gozo do crack recebe atenção constante. Se por um lado admite-se que mesmo o gozo do crack é capaz de promover alguns laços entre pares, por outro é necessário conceber que tal gozo ainda é um poderoso instrumento para que o sujeito atue contra sua vida.
A clínica psicanalítica propõe tratar o sintoma pela via da palavra, sob a aposta de que é possível gozar sob circunstâncias menos sofridas e mortais. Entre os profissionais da psicanálise, principalmente entre aqueles que ocupam cargo em instituições públicas de tratamento das toxicomanias, não é difícil constatar o fato de que estão diante de um trabalho que conta com as urgências e gravidades de alguns casos. Trata-se de um resguardo com a singularidade admitir que existam ocasiões em que o sintoma flerta mais de perto com a morte e precisa de cuidados diferenciados, sobretudo de outras áreas, como o auxílio médico e assistencial. Trata-se ainda de incluir a exceção, de não abandonar aqueles que nos pedem ajuda a seu modo, pois “é melhor ocupar-se dos fumantes de crack e legalizar a maconha, organizar as salas de shoots para os heroinômanos, para assim manter um diálogo com estes, do que abandoná-los em seu gozo autista”(3)
Fazer falar é a arte analítica na qual o ato de se intoxicar pode dar origem ao discurso onde não havia palavra. Tal é a exigência para a atuação do psicanalista na cidade que, confrontado com certa limitação de sua prática, precisa reconsiderar o impossível deflagrado pela toxicomania e indagar o que aí se apresenta enquanto possibilidade. São várias as questões que agitam o I Encontro da Rede TyA Brasil, que em breve se concretizará na oferta de um espaço ímpar para a discussão das temáticas propostas.
Notas:
1-. LACAN, J. « L’anvers de la psychanalyse » [1969/70] 1992, p. 59. Em referência ao provérbio : « chassez le naturel, il revient au galop ».
2-. MILLER, J.-A. « Le réel au XXI siècle », 2012, Présentation du thème du IX Congrès de l’AMP, La Cause du Désir, v.82, p. 89.
3-. LAURENT, E. “El objeto droga en la civilización”, 2011, in Pharmakon, Chifraduras Adictivas, vol. 12. Buenos Aires, Grama Ediciones, 2011, p. 14 e 15.
*Boletim da Rede TyA Brasil
tal como um maníaco que substituísse móveis sólidos e jardins verdadeiros por
cenários pintados em tela e montados em armações”.
Charles Baudelaire (Les Paradis Artificiels, 1860).
Baudelaire representa o zeitgeist de um século em que o empreendedorismo científico se enlaça às forças de um mercado disposto a formalizar um saber peculiar, aquele que se endereça às substâncias psicoativas com pretensão de extrair daí uma verdade unificadora, sob a denominação da farmacologia. A ciência que incide sobre o Phármakon, de braços dados com a lógica econômica do capital, produz a noção de um paraíso contemporâneo, não menos artificial, e mais, ainda com uma variedade de objetos que proporcionam, portanto, um gozo sem limites. Mas “a verdade, como o natural, volta a galope”(1). Trata-se, portanto, de um passo a passo fora de cadência, um des-com-passo geral de gozo que edifica uma contemporaneidade caracterizada por um real desordenado(2) cujos efeitos sintomáticos se manifestam, dentre outros, pelo aviltamento do corpo e na identificação deste enquanto dejeto. Cabe à psicanálise, portanto, interrogar os processos pelos quais os novos sintomas se apresentam sob a roupagem da violência contra si e na cidade, a partir de um gozo irrestrito onde o falasser flerta cotidianamente com a morte através de adições generalizadas.
A ausência de saber sobre a sexualidade resulta na existência do sintoma, que denuncia algo que resta incurável quanto ao gozo, impossível de normatizar, e razão pela qual fracassaram os Ideais de repressão apoiados no significante elementar de guerra às drogas. O momento atual é caracterizado por uma reviravolta da ordem simbólica e pelo fracasso dos Ideais. Diante da ausência de Ideais que impeçam o acaso de um encontro mais satisfatório, o sujeito põe em evidência a solidão da parceria com o mais-de-gozar na forma que lhe parece mais conveniente.
Mas há distinção entre a dimensão autista que se alcança ao final de uma análise, daquela que se apresenta nas ocasiões de intensa dedicação a uma parceria mortífera com o objeto causa de gozo. A desordem no real atinge os corpos através de sintomas que denotam um suicídio cotidiano, circunstâncias nas quais o gozo do crack recebe atenção constante. Se por um lado admite-se que mesmo o gozo do crack é capaz de promover alguns laços entre pares, por outro é necessário conceber que tal gozo ainda é um poderoso instrumento para que o sujeito atue contra sua vida.
A clínica psicanalítica propõe tratar o sintoma pela via da palavra, sob a aposta de que é possível gozar sob circunstâncias menos sofridas e mortais. Entre os profissionais da psicanálise, principalmente entre aqueles que ocupam cargo em instituições públicas de tratamento das toxicomanias, não é difícil constatar o fato de que estão diante de um trabalho que conta com as urgências e gravidades de alguns casos. Trata-se de um resguardo com a singularidade admitir que existam ocasiões em que o sintoma flerta mais de perto com a morte e precisa de cuidados diferenciados, sobretudo de outras áreas, como o auxílio médico e assistencial. Trata-se ainda de incluir a exceção, de não abandonar aqueles que nos pedem ajuda a seu modo, pois “é melhor ocupar-se dos fumantes de crack e legalizar a maconha, organizar as salas de shoots para os heroinômanos, para assim manter um diálogo com estes, do que abandoná-los em seu gozo autista”(3)
Fazer falar é a arte analítica na qual o ato de se intoxicar pode dar origem ao discurso onde não havia palavra. Tal é a exigência para a atuação do psicanalista na cidade que, confrontado com certa limitação de sua prática, precisa reconsiderar o impossível deflagrado pela toxicomania e indagar o que aí se apresenta enquanto possibilidade. São várias as questões que agitam o I Encontro da Rede TyA Brasil, que em breve se concretizará na oferta de um espaço ímpar para a discussão das temáticas propostas.
Notas:
1-. LACAN, J. « L’anvers de la psychanalyse » [1969/70] 1992, p. 59. Em referência ao provérbio : « chassez le naturel, il revient au galop ».
2-. MILLER, J.-A. « Le réel au XXI siècle », 2012, Présentation du thème du IX Congrès de l’AMP, La Cause du Désir, v.82, p. 89.
3-. LAURENT, E. “El objeto droga en la civilización”, 2011, in Pharmakon, Chifraduras Adictivas, vol. 12. Buenos Aires, Grama Ediciones, 2011, p. 14 e 15.
*Boletim da Rede TyA Brasil
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