Sobre o inconsciente no século XXI
Apresentação do tema e do cartaz por seu Diretor, Marcus André Vieira
Nosso corpo não para de nos dizer coisas. Para os médicos, seus sinais indicam o bom ou o mau funcionamento da máquina. O corpo pode, porém, dizer muito mais, porque é também nossa história viva, o resultado de aquilo que, dos nossos encontros, e até mesmo antes do nascimento, nos marcou e constituiu.
Foi que descobriu Freud, e ainda que ao tocar nesses ditos, feitos não apenas de palavras, mas também de sensações e fragmentos de imagens, afetamos a própria vida do corpo e de seu gozo. Dessa verdadeira chuva de falas que cai sobre nós, quais delas contarão? O que nos fará parte de nós, constituindo-nos como sujeitos? A própria unidade de nosso corpo não é dada de saída. Precisamos de alguém, a mãe ou de quem cuide de nós, para dar-lhe pouco a pouco consistência. Somente quando sou capaz de viver o enxame de dizeres que me atravessam como meus é que este corpo, até então falado, torna-se um corpo que fala, meu corpo.
Foi que descobriu Freud, e ainda que ao tocar nesses ditos, feitos não apenas de palavras, mas também de sensações e fragmentos de imagens, afetamos a própria vida do corpo e de seu gozo. Dessa verdadeira chuva de falas que cai sobre nós, quais delas contarão? O que nos fará parte de nós, constituindo-nos como sujeitos? A própria unidade de nosso corpo não é dada de saída. Precisamos de alguém, a mãe ou de quem cuide de nós, para dar-lhe pouco a pouco consistência. Somente quando sou capaz de viver o enxame de dizeres que me atravessam como meus é que este corpo, até então falado, torna-se um corpo que fala, meu corpo.
Hoje, tudo o que sustentava a unidade da identificação imaginária tende a ser substituído pela legião de todo os saberes que incidem, a partir do Google , em tempo real sobre a criança. Temos motivo para perguntar se algo mudou no espelho do Outro.
É o que busca mostrar inicialmente nosso cartaz. Ele é fruto do trabalho de Vik Muniz, artista brasileiro que toma uma obra representativa clássica de Eckersberg e a refaz usando pedaços de revistas rasgadas. O artista chama a série de seus quadros que realizam o mesmo procedimento, a qual esta obra pertence: espelhos de papel .
O resultado nos dá o sentimento tão contemporâneo de que a imagem que temos de nós mesmos só se sustenta enquanto a miramos de longe. Não me refiro ao tema conhecido segundo o qual de perto podemos enxergar os vícios e as imperfeições ocultas, mas sim perceber o quanto nossa autoimagem, incluindo nisso o corpo, é resultado de uma fabricação.
O cartaz visa, porém, a indicar algo mais (encarnado no título, que flutua em algum lugar entre a tela e nós). Ele apresenta o tema do nosso X Congresso: O corpo falante: sobre o inconsciente no século XXI. O corpo do cartaz não é aquele a que acabamos de nos referir. Não é o corpo falado, ou o corpo que adquiriu a capacidade de falar, mas o corpo falante.
Aceitar a aposta do inconsciente é assumir a seguinte premissa: o que nos sustenta como Um não é o que o espelho nos devolve. Esta aposta nos abre a profusão de imagens e de fragmentos que gravitam a nosso redor e é, sobretudo, nela que encontraremos essa sustentação.
Quando a empreitada prossegue o mais longe possível, até suas últimas consequências, a cada vez que nos aproximamos do gozo mais essencial de um corpo, quando nos aproximamos daquilo que mantém alguém vivo, o ponto último de sua singularidade, não encontramos nenhuma unidade. Além disso, nos deparamos sempre com coisas feitas tanto de linguagem quanto de gozo (o que Lacan chamou lalíngua ). É o que se vislumbra nos testemunhos daqueles que levaram suas análises a este ponto e que ao oferecerem seus relatos ao dispositivo do passe foram nomeados Analistas da Escola.
E quanto ao corpo? Do ponto de vista do passe nosso corpo é uma verdadeira "colagem surrealista" (como diz Lacan no Seminário 11 ao se referir à pulsão). É um pouco como o da moça do cartaz. Ora, há diferença entre o corpo implodido e fabricado de hoje e do corpo tal como a análise nos leva a considerar. É que ela nos mostra como nos sustentamos exatamente destas peças avulsas, simultaneamente pedaços de gozo e de linguagem.
Eles não são tão numerosos assim. Ao longo dos encontros, vemos que há algo que neles retorna, como uma nota que insiste na melodia. Não é por acaso se falamos muitas vezes em “percussão” para traduzir sua presença. Ela não tem muito sentido, apenas uma reincidência contínua em nosso dizer que chamamos, com Lacan, sinthoma.
Deste ponto de vista, a moça do cartaz só tem corpo porque o sinthoma , esta incidência inaugural da linguagem sobre o vivente, faz-se fala e que esta fala se entrecruza com outras compondo um mosaico linguageiro que dá a seu usuário uma miragem de unidade. É por falar, portanto, que ela pode ter um corpo, e mais: acreditar ser um. Disto deriva o termo proposto por Lacan nestes seminários, falasser.
Não estamos habituados e ter este conceito como referência em nossa prática. Tomamos mais facilmente aquele que vem nos ver como um sujeito que considera seu corpo como uma unidade fechada e que, por exemplo, vive muito mal qualquer grande intervenção, ou modificação ou alteração nele, já que o toma como a morada sagrada de sua alma. É preciso postular que lidamos cada vez mais com situações como a da moça do cartaz que não precisa assumir que não é um corpo, mas sim que o tem, passando a construí-lo e reconstruí-lo como pode, muitas vezes se perdendo nisso, sem contar com o apoio de seu sinthoma.
É o que busca mostrar inicialmente nosso cartaz. Ele é fruto do trabalho de Vik Muniz, artista brasileiro que toma uma obra representativa clássica de Eckersberg e a refaz usando pedaços de revistas rasgadas. O artista chama a série de seus quadros que realizam o mesmo procedimento, a qual esta obra pertence: espelhos de papel .
O resultado nos dá o sentimento tão contemporâneo de que a imagem que temos de nós mesmos só se sustenta enquanto a miramos de longe. Não me refiro ao tema conhecido segundo o qual de perto podemos enxergar os vícios e as imperfeições ocultas, mas sim perceber o quanto nossa autoimagem, incluindo nisso o corpo, é resultado de uma fabricação.
O cartaz visa, porém, a indicar algo mais (encarnado no título, que flutua em algum lugar entre a tela e nós). Ele apresenta o tema do nosso X Congresso: O corpo falante: sobre o inconsciente no século XXI. O corpo do cartaz não é aquele a que acabamos de nos referir. Não é o corpo falado, ou o corpo que adquiriu a capacidade de falar, mas o corpo falante.
Aceitar a aposta do inconsciente é assumir a seguinte premissa: o que nos sustenta como Um não é o que o espelho nos devolve. Esta aposta nos abre a profusão de imagens e de fragmentos que gravitam a nosso redor e é, sobretudo, nela que encontraremos essa sustentação.
Quando a empreitada prossegue o mais longe possível, até suas últimas consequências, a cada vez que nos aproximamos do gozo mais essencial de um corpo, quando nos aproximamos daquilo que mantém alguém vivo, o ponto último de sua singularidade, não encontramos nenhuma unidade. Além disso, nos deparamos sempre com coisas feitas tanto de linguagem quanto de gozo (o que Lacan chamou lalíngua ). É o que se vislumbra nos testemunhos daqueles que levaram suas análises a este ponto e que ao oferecerem seus relatos ao dispositivo do passe foram nomeados Analistas da Escola.
E quanto ao corpo? Do ponto de vista do passe nosso corpo é uma verdadeira "colagem surrealista" (como diz Lacan no Seminário 11 ao se referir à pulsão). É um pouco como o da moça do cartaz. Ora, há diferença entre o corpo implodido e fabricado de hoje e do corpo tal como a análise nos leva a considerar. É que ela nos mostra como nos sustentamos exatamente destas peças avulsas, simultaneamente pedaços de gozo e de linguagem.
Eles não são tão numerosos assim. Ao longo dos encontros, vemos que há algo que neles retorna, como uma nota que insiste na melodia. Não é por acaso se falamos muitas vezes em “percussão” para traduzir sua presença. Ela não tem muito sentido, apenas uma reincidência contínua em nosso dizer que chamamos, com Lacan, sinthoma.
Deste ponto de vista, a moça do cartaz só tem corpo porque o sinthoma , esta incidência inaugural da linguagem sobre o vivente, faz-se fala e que esta fala se entrecruza com outras compondo um mosaico linguageiro que dá a seu usuário uma miragem de unidade. É por falar, portanto, que ela pode ter um corpo, e mais: acreditar ser um. Disto deriva o termo proposto por Lacan nestes seminários, falasser.
Não estamos habituados e ter este conceito como referência em nossa prática. Tomamos mais facilmente aquele que vem nos ver como um sujeito que considera seu corpo como uma unidade fechada e que, por exemplo, vive muito mal qualquer grande intervenção, ou modificação ou alteração nele, já que o toma como a morada sagrada de sua alma. É preciso postular que lidamos cada vez mais com situações como a da moça do cartaz que não precisa assumir que não é um corpo, mas sim que o tem, passando a construí-lo e reconstruí-lo como pode, muitas vezes se perdendo nisso, sem contar com o apoio de seu sinthoma.
Assim entendo porque J. A. Miller em sua apresentação do tema do Congresso (http://bit.ly/1HG4OAs) nos propôs abordar a pulverização contemporânea do corpo a partir do conceito lacaniano de falasser e de fazer uma aposta. Faremos nossa, portanto, sua proposta de fazer "a aposta de que já analisamos o falasser, resta-nos saber dizer como”.
Não vamos simplesmente opor sujeito e falasser como se um pertencesse ao passado e o outro ao futuro, mais sim experimentar o efeito, no presente, da abordagem da experiência clínica a partir de um e de outro. Trata-se de bem-dizer o que acontece em nossa prática quando esta se dá como parceiro o falasser , ou seja, quando ela visa ao falante do corpo e não tanto aquilo que o fato de falar engendra como semblante de identidade. É que nossa prática tem cada vez mais de lidar com uma divisão que não aquela, de desde sempre teorizada, entre alma e corpo.
Como a de alguém, por exemplo, que detém poder e adora exercê-lo, mas vê como seu uso sem limites de cocaína coloca tudo em risco, ou ainda a mulher que só pode estar no amor como objeto de maus-tratos, mas que ao mesmo tempo é bem-sucedida como nenhum outro nos negócios. São divisões entre gozos, não tanto entre corpo e alma.
Teremos que nos apoiar na tensão proposta por Jacques-Alain Miller na mesma conferência entre sinthoma e escabelo. Este último, parte da "negação do inconsciente", por meio da qual alguém pode se "acreditar mestre de seu ser" para, a seguir tomar da cultura um escabelo, ou seja, "aquilo sobre o qual um falasser se iça, no qual sobe para ficar belo" para "empinar o nariz e dar uma de glorioso".
Também retomaremos a tríade por ele proposta como debilidade , delírio e tapeação [duperie] como verdadeiros eixos clínicos referentes aos três registros de Lacan, imaginário, simbólico e real no contexto da experiência clínica com o falasser . De fato, o sinthoma vem enlaçar a debilidade de tomar seu corpo como Um, o delírio de articular o necessário para acreditar nisso e a tapeação de se deixar levar por isso para circunscrever um real, "um real no qual acreditar sem nele aderir, um real que não tem sentido, indiferente ao sentido e que não pode ser outro a não ser o que é". Podemos dizer que temos acesso a este plano na experiência clínica diária? Parece mais prudente usá-lo como um mapa para percorrer as formas atuais de nossas dores, errâncias e gozos.
Esta é uma grande exigência clínica. Ela começa com o esforço de reduzir a grande distância que às vezes separa o que lemos e o que escrevemos do que fazemos.
Apenas uma comunidade como a nossa pode se dar tal desafio. Nossos congressos a cada dois anos são o momento de convergência do trabalho desta comunidade, a dos membros da Associação Mundial de Psicanálise.
Estamos espalhados por todo o mundo, mas trabalhamos em uma mesma orientação. Garantir que esta orientação verifique-se no trabalho de nossa Associação é a tarefa de seu Presidente, que segue de perto a preparação deste Congresso. Vocês poderão em breve descobrir o site do evento, assim como todas as informações práticas referentes a ele.
Finalmente, uma nota para dizer que o Brasil, anfitrião deste Congresso, pode ter papel significativo a desempenhar nele. É um país que leva muito a sério, para o melhor e o pior, o corpo; que tem a tradição de grandes manifestações em que o falante do corpo está presente e ordena massas às vezes na casa dos milhões. Os membros da Escola Brasileira de Psicanálise estão atentos às consequências que o ensino de Lacan pode disso extrair.
O essencial, a meu ver, é destacar o que ocorre quando o falante do corpo comparece, sustentando um dizer naquilo que ele pode causar riso ou escândalo. Não é o que explica o grande número dos que comparecem a nossos eventos? É que eles sabem que se pode tudo ler no Google e tudo ver no Facebook , mas que para estar no plano da aposta, da aposta do indecidível, do que pode provocar um dizer quando encontra o corpo, é preciso estar ali. É o fato do encontro com um dizer naquilo que ele muda uma vida, que continua a ser o desafio da psicanálise e para isso, de acordo com o poeta, não há equilíbrio, apenas equilibristas.
É por esta razão que convido vocês a virem encontrar os membros da AMP no seu trabalho no Brasil.
Não vamos simplesmente opor sujeito e falasser como se um pertencesse ao passado e o outro ao futuro, mais sim experimentar o efeito, no presente, da abordagem da experiência clínica a partir de um e de outro. Trata-se de bem-dizer o que acontece em nossa prática quando esta se dá como parceiro o falasser , ou seja, quando ela visa ao falante do corpo e não tanto aquilo que o fato de falar engendra como semblante de identidade. É que nossa prática tem cada vez mais de lidar com uma divisão que não aquela, de desde sempre teorizada, entre alma e corpo.
Como a de alguém, por exemplo, que detém poder e adora exercê-lo, mas vê como seu uso sem limites de cocaína coloca tudo em risco, ou ainda a mulher que só pode estar no amor como objeto de maus-tratos, mas que ao mesmo tempo é bem-sucedida como nenhum outro nos negócios. São divisões entre gozos, não tanto entre corpo e alma.
Teremos que nos apoiar na tensão proposta por Jacques-Alain Miller na mesma conferência entre sinthoma e escabelo. Este último, parte da "negação do inconsciente", por meio da qual alguém pode se "acreditar mestre de seu ser" para, a seguir tomar da cultura um escabelo, ou seja, "aquilo sobre o qual um falasser se iça, no qual sobe para ficar belo" para "empinar o nariz e dar uma de glorioso".
Também retomaremos a tríade por ele proposta como debilidade , delírio e tapeação [duperie] como verdadeiros eixos clínicos referentes aos três registros de Lacan, imaginário, simbólico e real no contexto da experiência clínica com o falasser . De fato, o sinthoma vem enlaçar a debilidade de tomar seu corpo como Um, o delírio de articular o necessário para acreditar nisso e a tapeação de se deixar levar por isso para circunscrever um real, "um real no qual acreditar sem nele aderir, um real que não tem sentido, indiferente ao sentido e que não pode ser outro a não ser o que é". Podemos dizer que temos acesso a este plano na experiência clínica diária? Parece mais prudente usá-lo como um mapa para percorrer as formas atuais de nossas dores, errâncias e gozos.
Esta é uma grande exigência clínica. Ela começa com o esforço de reduzir a grande distância que às vezes separa o que lemos e o que escrevemos do que fazemos.
Apenas uma comunidade como a nossa pode se dar tal desafio. Nossos congressos a cada dois anos são o momento de convergência do trabalho desta comunidade, a dos membros da Associação Mundial de Psicanálise.
Estamos espalhados por todo o mundo, mas trabalhamos em uma mesma orientação. Garantir que esta orientação verifique-se no trabalho de nossa Associação é a tarefa de seu Presidente, que segue de perto a preparação deste Congresso. Vocês poderão em breve descobrir o site do evento, assim como todas as informações práticas referentes a ele.
Finalmente, uma nota para dizer que o Brasil, anfitrião deste Congresso, pode ter papel significativo a desempenhar nele. É um país que leva muito a sério, para o melhor e o pior, o corpo; que tem a tradição de grandes manifestações em que o falante do corpo está presente e ordena massas às vezes na casa dos milhões. Os membros da Escola Brasileira de Psicanálise estão atentos às consequências que o ensino de Lacan pode disso extrair.
O essencial, a meu ver, é destacar o que ocorre quando o falante do corpo comparece, sustentando um dizer naquilo que ele pode causar riso ou escândalo. Não é o que explica o grande número dos que comparecem a nossos eventos? É que eles sabem que se pode tudo ler no Google e tudo ver no Facebook , mas que para estar no plano da aposta, da aposta do indecidível, do que pode provocar um dizer quando encontra o corpo, é preciso estar ali. É o fato do encontro com um dizer naquilo que ele muda uma vida, que continua a ser o desafio da psicanálise e para isso, de acordo com o poeta, não há equilíbrio, apenas equilibristas.
É por esta razão que convido vocês a virem encontrar os membros da AMP no seu trabalho no Brasil.
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