Mais
do que na cereja sobre o bolo, prefiro pensar na infusão que lhes
servirei como um digestivo, depois das iguarias trazidas por este
Congresso[1], a fim de abrir o apetite enquanto pensam naquele que
acontecerá daqui a dois anos. Espera-se, então, que eu introduza o tema
do próximo Congresso.
Digo
a mim mesmo que isso dura há mais de trinta anos, se considerarmos que
os Congressos da AMP deram continuidade aos Encontros do Campo Freudiano
que começaram em 1980. Aqui estamos, portanto, mais uma vez, ao pé do
mesmo muro (mur). A palavra Muro me veio à cabeça, ela não deixa de
evocar o neologismo que debocha do amor. É ao amuro (amur) que devo a
honra invariável de dar o lá da sinfonia, aquela que os membros da AMP,
nós, terão de compor ao longo dos dois anos que se passarão antes de nos
encontrarmos? Seria esse um fato de transferência remanescente com
relação ao lugar daquele a quem coube a tarefa de fundar nossa
Associação outrora? Mas, como acabo de lembrar, assumi essa tarefa, de
intitular, de dar um nome, pelo menos um tema, desde antes, desde o
primeiro Encontro Internacional que aconteceu em Caracas com a presença
de Lacan. Se há amuro, eu não o remeterei à função de fundador, em nada
consagrada nos nossos estatutos, mas gostaria de referi-lo à de um
batedor, função que me atribuí ao intitular meu curso como «A Orientação
Lacaniana».
Amuro
quer dizer sobretudo que é preciso atravessar, a cada vez, o muro da
linguagem, pata tentar cingir mais de perto – não digamos o real – o que
fazemos em nossa prática analítica. Orientar-me pelo pensamento de
Lacan constituiu minha preocupação e sei que a compartilhamos. A
Associação Mundial de Psicanálise, de fato, não tem outra coesão. Essa
preocupação está no princípio do conjunto que formamos, para além dos
estatutos, dos mutualismos e até mesmo mais além dos laços de amizade,
de simpatia que se tecem entre nós no decorrer dos anos.
Lacan
reivindicava a dignidade para seu pensamento. Deve-se, dizia ele, ao
fato de se esmerar em sair dos clichês. De fato, esse pensamento
atordoa. Trata-se, para nós, de segui-lo nas vias inéditas. Essas vias
são com frequência obscuras, ainda mais quando Lacan mergulha em seu
último ensino. Poderíamos tê-lo deixado ali, abandoná-lo. Mas nos
engajamos em segui-lo. Os dois últimos Congressos atestam isso.
Por
que nos engajarmos nisto, nesse difícil ramo último de seu ensino?
Nosso gosto pela decifração não é gratuito. Tenho esse gosto, nós o
temos pelo fato de sermos analistas. E o somos o bastante para perceber,
mediante alguns clarões perfurando as nuvens obscuras da proposição de
Lacan, o fato de ele ter conseguido destacar um realce que nos instrui
sobre o que se tornou a psicanálise, que não está mais exatamente em
conformidade com o que se pensava sobre ela. Numa posição extremada, ele
chegou até a dizer que a prática analítica era uma prática delirante.
Não nos deteremos nisso.
A
psicanálise muda. Não é um desejo, mas um fato. Ela muda em nossos
consultórios de analistas e essa mudança, no fundo, é para nós tão
manifesta que o Congresso de 2012 sobre a ordem simbólica, assim como o
deste ano sobre o real, têm, cada um, em seu título, a mesma menção
cronológica: «no século XXI». Como dizer melhor o fato de termos o
sentimento do novo e, com ele, a percepção da urgência da necessidade de
uma atualização? Como não termos, por exemplo, a ideia de uma fissura
quando Freud inventou a psicanálise, se assim podemos dizer, sob a égide
da rainha Vitória, paradigma da repressão da sexualidade, ao passo que o
século XXI conhece a difusão maciça do que é chamado depornô, ou seja, o
coito exibido, tornado espetáculo, show acessível a cada um pela
internet por meio de um simples clique com o mouse? De Vitória ao pornô,
não apenas passamos da interdição à permissão, mas à incitação, à
intrusão, à provocação, ao forçamento. O que é o pornô senão uma
fantasia filmada com uma variedade própria para satisfazer os apetites
perversos em sua diversidade? Nada melhor que a profusão imaginária de
corpos se entregando a um «se dar» e a um «se pegar» para mostrar a
ausência da relação sexual no real.
É
algo novo na sexualidade, em seu regime social, em seus modos de
aprendizagem, entre os jovens, entre as jovens classes que entram na
carreira. Eis então os masturbadores aliviados de terem de produzir eles
mesmos os sonhos quando despertos, uma vez que os encontram feitos, já
sonhados para eles. O sexo frágil, no que concerne ao pornô, é o
masculino, que cede a isso de muito bom grado. Quantas vezes não ouvimos
em análise homens que se queixam das compulsões de acompanhar as
peripécias pornográficas e até mesmo de estocá-las em uma reserva
eletrônica! Do outro lado, o das esposas e das amantes, pratica-se menos
do que o conhecimento que se tem da prática de seu parceiro. Então,
depende: considera-se uma traição ou um divertimento sem consequências.
Essa clínica da pornografia é do século XXI – só a evoco, mas ela
mereceria ser detalhada por ser insistente e porque há aproximadamente
quinze anos tornou-se extremamente presente nas análises.
Como
não evocar, a propósito dessa prática tão contemporânea, o que foi,
assinalado por Lacan como a irrupção dos efeitos do cristianismo na
arte, efeitos levados a seu apogeu pelo barroco? De volta de uma turnê
pelas igrejas da Itália, que ele chamava de uma orgia, Lacan notava, em
seu Seminário Mais, ainda: «tudo é exibição de corpo evocando o
gozo»[2]. No que concerne à pornografia, estamos nisso. Contudo, a
exibição religiosa dos corpos lânguidos deixa sempre fora de seu campo a
própria copulação, assim como a copulação está fora do campo, diz
Lacan, na realidade humana.
Curioso
retorno desta expressão: «realidade humana». Ela foi usada pelo
primeiro tradutor de Heidegger, para o francês, a fim de expressar o
Dasein. Mas há um bom tempo cortamos a via do deixar-ser desse Dasein.
Na era da técnica, a copulação não fica mais confinada no privado
nutrindo as fantasias particulares a cada um. Ela foi reintegrada ao
campo da representação, passando a uma escala de massa.
Uma
segunda diferença entre o pornô e o barroco deve ainda ser enfatizada.
Tal como definido por Lacan, o barroco visaria à regulação da alma por
meio da visão dos corpos, da escopia corporal. Não há nada disso no
pornô, nenhuma regulação, há mais, antes, uma perpétua infração. A
escopia corporal funciona na pornografia como uma provocação a um gozo
destinado a se fartar sob o modo do mais-gozar, modo transgressivo em
relação à regulação homeostática e precária em sua realização silenciosa
e solitária. Em geral, a cerimônia se realiza sem falas, de ponta a
ponta na tela, mas com os suspiros ou gritos da mímica do prazer. A
adoração do falo, outrora segredo dos mistérios, permanece um episódio
central – exceto no pornô lésbico -, porém, doravante, banalizado.
A
difusão planetária da pornografia por meio da tela eletrônica teve, sem
dúvida, efeitos dos quais o psicanalista recebe testemunhos. O que diz,
o que representa a onipresença do pornô no começo deste século? Nada
senão: a relação sexual não existe. É isso que é repercutido, de algum
modo cantado, por esse espetáculo incessante e sempre disponível. Pois
apenas essa ausência é suscetível de dar conta dessa empolgação, cujas
consequências nos costumes das novas gerações, quanto ao estilo das
relações sexuais, já estamos acompanhando: desencantamento,
brutalização, banalização. A fúria copulatória alcança na pornografia um
zero de sentido, que faz os leitores de A fenomenologia do espírito
pensarem no que disse Hegel sobre a morte infligida pela liberdade
universal diante do terror: ela é «a mais fria e a mais rasa, sem maior
significação do que o cortar a cabeça de um repolho ou engolir um gole
d'água»[3]. A copulação pornográfica tem a mesma vacuidade semântica.
A
relação sexual não existe! É preciso entender essa sentença com a
ênfase posta por Plutarco quando relata, o único a fazê-lo na
Antiguidade, a fala fatal que ressoa sobre o mar:O grande Pã está morto!
O episódio figura no diálogo intitulado «Sobre o desaparecimento dos
oráculos», que outrora evoquei em meu curso[4]. E a fala ressoa como o
último oráculo anunciando que, depois dele, não haverá mais oráculos.
Como o oráculo que anuncia o desaparecimento dos oráculos. De fato,
nessa época, sob Tibério, em todo o território do império romano, os
santuários nos quais a multidão outrora se aglomerava para solicitar e
recolher os oráculos conheceram um desafeto crescente. Uma mutação
invisível caminhando nas profundezas do gosto fechava a boca dos
oráculos inspirados pelos demônios da mântica – digo demônios não pelo
fato de eles serem malvados, mas porque eram chamados de demônios os
seres intermediários entre os deuses e os homens, e a figura de Pã sem
dúvida os representava.
Não
há como não sermos sensíveis ao destino dos oráculos, já que um dia, de
fato, eles desapareceram em uma zona onde foram avidamente procurados,
uma vez que nossa prática de interpretação, temos o costume de dizer, é
oracular. Mas nosso oráculo, para nós, é justamente o dito de Lacan
sobre a relação sexual. Ele nos permite pôr em seu lugar o fato da
pornografia e Lacan o formulou muito antes da chegada da pornografia
eletrônica da qual falo. Esta não é de modo algum – quem o cogitaria? – a
solução dos impasses da sexualidade. Ela é sintoma desse império da
técnica, que vai estendendo seu reino sobre as mais diversas
civilizações do planeta, até mesmo as mais retrógradas. Não se trata de
depor as armas diante desse sintoma e de outros da mesma fonte. Eles
exigem da psicanálise interpretação.
Quem
sabe essa digressão sobre a pornografia nos dê acesso ao título do
próximo Congresso? Apresentei, por ocasião de um desses Congressos e
Leonardo Gorostiza o lembrou, a disciplina que escolhi me impor na
escolha do tema para a AMP. Eles se dão em grupo de três, dizia eu, e
cada um, alternadamente, dá a prevalência a uma das três categorias de
Lacan, cujas iniciais são R.S.I. Depois de «A ordem simbólica...»,
depois de «Um real...», seria de se esperar, como Gorostiza e outros
deduziram perfeitamente, que o imaginário viesse em primeiro plano. De
que melhor forma isso poderia se fazer senão a título do corpo, uma vez
que encontramos a seguinte equivalência formulada por Lacan: o
imaginário é o corpo. E ela não é isolada, seu ensino, em seu conjunto,
testemunha a favor dessa equivalência.
Em
primeiro lugar, nesse ensino, o corpo se introduz, inicialmente, como
imagem, imagem no espelho. Disso decorre o fato de Lacan dar ao eu [moi]
um estatuto que se distingue singularmente daquele que Freud lhe
reconhecia em sua segunda tópica. Em segundo lugar, é ainda com um jogo
de imagem que Lacan ilustra a articulação prevalecente entre o Ideal do
eu e o eu ideal, cujos termos ele toma emprestado de Freud, mas para
formalizá-los de maneira inédita. Em terceiro, essa afinidade entre o
corpo e o imaginário é também reafirmada em seu ensino dos nós. A
construção borromeana enfatiza que é pelo viés de sua imagem que o corpo
participa, primeiro, da economia do gozo. Em quarto lugar, mais além, o
corpo condiciona tudo o que o registro imaginário aloja de
representações: significado, sentido e significação, a própria imagem do
mundo. É no corpo imaginário que as palavras da língua fazem entrar as
representações, que nos constituem um mundo ilusório sob o modelo da
unidade do corpo. Aqui estão muitas razões para escolher que o próximo
Congresso faça variar o tema do corpo na dimensão do imaginário.
Estava
quase endossando essa ideia quando me dei conta de que o corpo, como
corpo falante, muda de registro. O que é o corpo falante? Ah, é um
mistério[5], disse Lacan um dia. Esse dito de Lacan deve ser ainda mais
mantido pelo fato de que mistério não é matema, é até mesmo o oposto. Em
Descartes, o que faz mistério, mas permanece indubitável, é a união da
alma com o corpo. A «Sexta meditação» lhe é dedicada e, por si só, ela
mobilizou tanto a engenhosidade de seu mais eminente comentador quanto
as cinco precedentes. Essa união, uma vez que ela concerne meu corpo,
meum corpus, vale como terceira substância entre substância pensamento e
substância extensão. Esse corpo, diz Descartes – a citação é famosa -,
«não apenas estou alojado em meu corpo, como um piloto em seu navio,
mas, além disso, estou muito estreitamente ligado a ele e de tal forma
confundido e misturado que componho com ele como uma só totalidade»[6].
Sabemos que a dúvida hiperbólica figurada pela hipótese do gênio maligno
poupa o cogito e nos entrega, dele, a certeza como um resto que resiste
à dúvida, até mesmo a mais ampla que se possa conceber. Sabe-se menos
que,a posteriori, precisamente nessa sexta meditação, descobre-se que a
dúvida poupava também a união do eu penso com o corpo[7], aquele que se
distingue, entre todos, por ser o corpo desse eu penso.
Sem
dúvida, para dar-se conta disso, é preciso prolongar o arco desse a
posteriori até Edmund Husserl e suas Meditações cartesianas. Ali, ele
distingue com uma palavra preciosa, de um lado, os corpos físicos entre
os quais os de meus semelhantes e, do outro, meu corpo.E, para meu
corpo, ele introduz um termo especial. Ele escreve: "Penso minha carne
com uma caracterização singular, meinen Leibe, a saber, o que, sozinho,
não é um simples corpo, mas sim uma carne, o único objeto no interior de
minha camada abstrata da experiência ao qual atribuo um campo de
sensação à altura da experiência"[8]. A palavra preciosa é
carne,distinta do que são os corpos físicos. Por carne, ele entende o
que aparecia a Descartes sob as formas da união da alma e do corpo.
Essa
carne é sem dúvida apagada no Dasein heideggeriano, embora tenha
alimentado a reflexão de Merleau-Ponty em sua obra inacabada O visível e
o invisível[9], livro ao qual Lacan dedicou sua atenção ao longo de seu
Seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise[10]. Ali, ele
não enfatiza seu interesse por esse vocábulo, mas, no entanto, o
vocábulo carne será retomado por ele quando evoca a carne que traz a
marca do signo. O signo recorta a carne, a desvitaliza e a cadaveriza, o
corpo, então, se separa dela. Na distinção entre o corpo e a carne, o
corpo se mostra apto para figurar, como superfície de inscrição, o lugar
do Outro do significante. Para nós, o mistério cartesiano da união
psicossomática se desloca. O que faz mistério, mas permanece
indubitável, é o que resulta do domínio do simbólico sobre o corpo. Para
dizê-lo em termos cartesianos: o mistério é sobretudo o da união da
fala com o corpo. Por esse fato de experiência, pode-se dizer que ele é
do registro do real. Convém, então, dar lugar a isto que o último ensino
de Lacan propõe: um nome novo para o inconsciente. Há uma palavra para
dizê-lo. Não podemos mantê-la para o Congresso por se tratar de um
neologismo. Não se pode traduzi-la. Se vocês se reportarem ao texto
intitulado «Televisão»[11], vocês verão que, ali, interpelo Lacan a
propósito da palavra inconsciente. Digo-lhe muito simplesmente:
«Inconsciente – que palavra esquisita!». É que já me parecia não ser um
termo que conjugasse muito bem com o ponto no qual ele estava em sua
doutrina. Ele me respondeu – vocês podem ver, já viram, já sabem – com
uma recusa categórica: «Freud não encontrou outra melhor e não há porque
voltar a isso». Portanto, ele admite que essa palavra é imperfeita e
desiste de qualquer tentativa de mudá-la. Dois anos mais tarde, porém,
ele muda de opinião, se considerarmos seu escrito «Joyce o Sintoma»[12],
no qual lança o neologismo de que falava, o falasser, a respeito do
qual ele profetiza que substituirá a palavra freudiana inconsciente.
Eis
aqui a operação que proponho a fim de nos dar a bússola para nosso
próximo Congresso. Essa metáfora, a substituição do inconsciente
freudiano pelo falasser lacaniano, fixa um lampejo. Proponho tomá-la
como índice do que muda na psicanálise no século XXI, quando ela deve
levar em conta outra ordem simbólica e outro real diferentes daqueles
sobre os quais ela se estabelecera.
A
psicanálise muda. É um fato. Ela havia mudado, enfatizava Lacan com
malícia, uma vez que ela foi inicialmente praticada na solidão, por
Freud, e que, em seguida, ela passou a ser praticada por um par. Mas ela
conheceu muitas outras mudanças que podemos mensurar, do momento em que
lemos Freud, e até mesmo lemos, relemos o primeiro Lacan. Ela muda, de
fato, apesar de nossa atrelagem a palavras e a esquemas antigos. É um
esforço continuado permanecer o mais próximo possível da experiência
para dizê-la sem se deixar esmagar sob o muro da linguagem. Para nos
ajudar a ultrapassá-lo é preciso um (a)muro[13], uma palavra agalmática
que perfura esse muro. E encontro essa palavra no falasser.
Ela
não estará no cartaz do próximo Congresso. Mas, entre nós, saberemos
que se trata do falasser que se substitui ao inconsciente, uma vez que
analisar o falasser não é mais exatamente a mesma coisa que analisar o
inconsciente no sentido de Freud, nem mesmo o inconsciente estruturado
como uma linguagem. Diria inclusive o seguinte: façamos a aposta de que
analisar o falasser é o que já fazemos, resta-nos saber dizê-lo.
Aprendemos
a dizê-lo, por exemplo, quando falamos do sintoma como de um sinthoma.
Aí está uma palavra, um conceito que é da época do falasser. Ele traduz
um deslocamento do conceito de sintoma, do inconsciente ao falasser.
Como vocês sabem, o sintoma como formação do inconsciente estruturado
como uma linguagem é uma metáfora, um efeito de sentido induzido pela
substituição de um significante por outro. Em contrapartida, o sinthoma
de um falasser é um acontecimento de corpo, uma emergência de gozo. O
corpo em questão, aliás, nada diz que é o de vocês. Você pode ser o
sintoma de outro corpo desde que você seja uma mulher. Há histeria
quando há sintoma de sintoma, quando você faz sintomado sintoma de um
outro, ou seja, sintoma no segundo grau. O sintoma do falasser resta,
sem dúvida, a ser esclarecido em sua relação com os tipos clínicos –
apenas evoco, sobre os rastros de Lacan, o que acontece na histeria.
Não
chegaremos a isso esquecendo a estrutura do sintoma do inconsciente,
nem tampouco esquecendo que a segunda tópica de Freud não anula a
primeira, mas se compõe com ela. Do mesmo modo, Lacan não veio para
apagar Freud, mas para prolongá-lo. Os remanejamentos de seu ensino se
fazem sem fissuras utilizando-se os recursos de uma topologia conceitual
que garante a continuidade sem interditar a renovação. Assim, de Freud a
Lacan, diremos que o mecanismo do recalque nos é explicitado pela
metáfora, tal como do inconsciente ao falasser a metáfora nos dá o
envelope formal do acontecimento de corpo. O recalque explicitado pela
metáfora é uma cifração e a operação de cifração trabalha para o gozo
que afeta o corpo. É com um remendo como este, de peças diversas, de
diferentes épocas, tomadas emprestadas de Freud e de Lacan, que se tece
nossa reflexão - não temos de recuar diante do fato de assim fazer um
remendo a fim de avançar na circunscrição da psicanálise no século XXI.
Aponto
outro vocábulo – depois de sinthoma -, da época do falasser e que
situarei ao lado do sinthoma. É uma palavra que obriga também a proceder
a uma nova classificação das noções que nos são familiares. A palavra
que situo ao lado de sinthoma é escabelo[escabeau], que tomo emprestado
de «Joyce o Sintoma» [14]. O escabelo não é uma escada – é menor que uma
escada -, mas tem degraus. O que é o escabelo? Penso no escabelo
psicanalítico, não apenas aquele que precisamos para pegar os livros na
estante de uma biblioteca. O escabelo é, de um modo geral, aquilo sobre o
qual o falasser se ergue, sobepara se fazer belo. É seu pedestal, que
lhe permite elevar a si mesmo à dignidade da Coisa[15]. Isto, por
exemplo, é um pequeno escabelo para mim [mostrando o pequeno estrado sob
a mesa].
O
escabelo é um conceito transversal. Traduz de maneira imagética a
sublimação freudiana, mas em seu cruzamento com o narcisismo. Aqui está
uma aproximação que é propriamente da época do falasser. O escabelo é a
sublimação, mas na medida em que ela se funda sobre o eu não penso
inicial do falasser. O que é esse eu não penso? É a negação do
inconsciente por meio da qual o falasser se crê senhor de seu ser. E,
com seu escabelo, ele acrescenta a isso o fato de se crer um senhor
belo. O que chamamos de cultura não é nada além da reserva dos escabelos
na qual se vai buscar com o que esticar o colarinho e bancar o
glorioso.
Para
dar o exemplo dessas categorias que parecem despontar e das quais
necessitamos, me dizia que poderia tentar traçar um paralelo entre o
sinthoma e o escabelo. O que fomenta o escabelo? O falasser sob sua face
de gozo da fala. Esse gozo da fala origina os grandes ideais do Bem, do
Verdadeiro e do Belo. O sinthoma, em compensação, como sintoma do
falasser, está ligado a seu corpo. O sintoma surge da marca escavada
pela fala quando ela toma a aparência do dizer e faz acontecimento de
corpo. O escabelo está do lado do gozo da fala que inclui o sentido. Em
contrapartida, o gozo próprio ao sinthoma exclui o sentido.
Se
Lacan se apaixonou por James Joyce e especialmente por sua obra
Finnegans Wake, foi devido à façanha – ou à farsa – que representa por
fazer convergir sintoma e escabelo. Em termos exatos, Joyce fez do
próprio sintoma como fora do sentido, ininteligível, o escabelo de sua
arte. Ele criou uma literatura cujo gozo é tão opaco quanto o do
sintoma, nem por isso deixando de ser um objeto de arte elevado sobre o
escabelo à dignidade da Coisa. Podemos nos perguntar se a música, a
pintura, as Belas Artes tiveram seu Joyce. Talvez o que corresponda a
Joyce, no registro da música, seja a composição atonal, inaugurada por
Schoenberg, de quem ouvimos falar há pouco[16]. E, no que concerne ao
que chamamos de Belas Artes, o iniciador talvez tenha sido um certo
Marcel Duchamp. Joyce, Schoenberg, Duchamp são fabricantes de escabelos
destinados a fazer arte com o sintoma, com o gozo opaco do sintoma. E
teríamos bastante dificuldade em ponderar sobre o que é o
escabelo-sintoma no que concerne à clínica. Temos, antes, de tirar disso
uma lição.
Mas,
digam-me uma coisa, fazer de seu sintoma um escabelo não é precisamente
o de que se trata no passe, no qual se joga com seu sintoma e com seu
gozo opaco? Fazer uma análise é trabalhar a castração do escabelo para
trazer à luz o gozo opaco do sintoma. Fazer o passe é jogar com o
sintoma assim esvaziado, a fim de fazer dele um escabelo, sob os
aplausos do grupo analítico. E, para dizê-lo em termos freudianos, isso é
evidentemente um fato de sublimação e os aplausos não são fortuitos. O
momento em que a assistência está satisfeita faz parte do passe. Pode-se
até dizer que o passe se realiza aí. No tempo de Lacan, nunca se narrou
os relatos de passe ao público. A operação ficava sepultada nas
profundezas da instituição. Ela só era conhecida por um pequeno número
de iniciados. O passe era uma questão para não mais de dez pessoas.
Digamos que eu inventei fazer uma mostração pública dos passes porque eu
sabia, eu pensava, acreditava que isso era a própria essência do passe.
Os escabelos aí estão para fazer a beleza, pois esta é a defesa última
contra o real. Mas, uma vez que os escabelos são derrubados, queimados,
resta ainda ao falasser analisado demonstrar seu saber fazer com o real,
saber fazer com ele um objeto de arte, seu saber dizer, saber bem
dizê-lo. É o que constitui o estopim, a tomada da palavra que ele é
convidado a fazer. O acontecimento de passe não é a nomeação, a decisão
de um coletivo de expertos. O acontecimento de passe é o dizer de um
sozinho, o Analista da Escola, quando ele ordena sua experiência, quando
ele a interpreta em benefício de todo aquele que vem ao Congresso, o
qual se trata de seduzir e inflamar. E isso foi posto à prova,
amplamente, durante o último Congresso.
Um
dizer é um modo da fala que se distingue de fazer acontecimento. Freud
discriminava, entre os modos da consciência: consciente, pré-consciente e
inconsciente. Para nós, se há modos a se distinguir não são relativos à
consciência, mas modos da fala. Em termos de retórica, há a metáfora e a
metonímia. Em termos de lógica, há o modal e o apofântico, o afirmativo
e mesmo o imperativo. Na perspectiva estilística, há o clichê, o
provérbio, o refrão. E da fala depende a escrita. Pois bem, quando
inconsciente é conceitualizado a partir da fala e não mais a partir da
consciência, ele porta um nome novo: o falasser. O ser de que se trata
não precede a fala. É o contrário, a fala outorga o ser a esse animal
por um efeito a posteriori. Desde então, seu corpo se separa desse ser
para passar para o registro do ter. O falasser não é o corpo, ele o
tem[17].
O
falasser tem de se haver com seu corpo como imaginário, assim como tem
de se haver com o simbólico. O terceiro termo, o real, é o complexo ou o
implexo dos dois outros. Trata-se do corpo falante com seus dois gozos,
gozo da fala e gozo do corpo: um leva ao escabelo, o outro sustenta o
sinthoma. No falasser há, a um só tempo, gozo do corpo e também gozo que
se deporta para fora do corpo, gozo da fala que Lacan identifica, com
audácia e com lógica, ao gozo fálico, uma vez que este é desarmônico em
relação ao corpo. O corpo falante goza, portanto, em dois registros: por
um lado, ele goza de si mesmo, ele se afeta de gozo, ele se goza – uso
do verbo na forma reflexiva; por outro, um órgão desse corpo se
distingue de gozar de si mesmo, ele condensa e isola um gozo à parte que
se reparte entre os objetosa. Nesse sentido, o corpo falante é dividido
quanto a seu gozo. Esse corpo não é unitário como o imaginário o faz
crer. Por essa razão, é preciso que o gozo fálico se separe, no
imaginário, na operação chamada de castração. O corpo falante fala em
termos de pulsões. Isso autorizava Lacan a apresentar a pulsão sob o
modelo de uma cadeia significante. Ele prosseguiu na via desse
desdobramento em sua lógica da fantasia, na qual ele disjunta o Isso e o
inconsciente. Mas, em contrapartida, o conceito de corpo está na junção
do Isso com o inconsciente. Ele lembra que as cadeias significantes que
deciframos à maneira freudiana são conectadas com o corpo e são feitas
de substância gozante. Quanto ao Isso, Freud dizia que ele era o grande
reservatório da libido. Esse dito é deportado para o corpo falante que,
como tal, é substância gozante. É do corpo que são extraídos os objetos
a; é no corpo que é buscado o gozo para o qual trabalha o inconsciente.
Freud
dizia que a teoria das pulsões era uma mitologia. O gozo, em
compensação, não é um mito. No capítulo 7 da Die Traumdeutung, Freud
chama o aparelho psíquico de uma ficção. O corpo falante, porém, não é
uma ficção. É no corpo que Freud encontra o princípio de sua ficção do
aparelho psíquico. Ele é construído sobre o arco reflexo como um
processo regulado de maneira a manter o mais baixo possível a quantidade
de excitação. Lacan substituiu o aparelho psíquico estruturado pelo
arco reflexo pelo inconsciente estruturado como uma linguagem. Não se
trata de estímulo-resposta, mas de significante-significado. Só que – e
esta é uma expressão de Lacan já enfatizada e explicitada por mim – essa
linguagem é uma elucubração de saber sobre lalíngua[18], lalíngua do
corpo falante. Disso decorre o fato de o inconsciente ser, ele próprio,
uma elucubração de saber sobre o corpo falante, sobre o falasser.
O
que é uma elucubração de saber? É uma articulação de semblantes a um só
tempo se desprendendo do real e envelopando-o. A mutação maior que
atinge a ordem simbólica no século XXI é o fato de ela ser, doravante,
amplamente conhecida como uma articulação de semblantes. As categorias
tradicionais que organizam a existência passam para o nível de simples
construções sociais, votadas à desconstrução. Não é apenas o fato de os
semblantes vacilarem, mas de eles serem reconhecidos como semblantes. E,
devido a um curioso entrecruzamento, é a psicanálise que, por meio de
Lacan, restitui o outro termo da polaridade conceitual: nem tudo é
semblante, há um real.
O
real do laço social é a inexistência da relação sexual. O real do
inconsciente é o corpo falante. Enquanto a ordem simbólica era concebida
como um saber regulando o real e lhe impondo sua lei, a clínica era
dominada pela oposição entre neurose e psicose. Agora, a ordem simbólica
é reconhecida como um sistema de semblantes que não comanda o real, mas
lhe é subordinada. Um sistema respondendo ao real da relação sexual que
não existe.
Disso
resulta, se assim posso dizer, uma declaração de igualdade clínica
fundamental entre os falasseres. Os seres falantes estão condenados à
debilidade mental pelo próprio mental, precisamente pelo imaginário como
imaginário de corpo e imaginário de sentido. O simbólico imprime no
corpo imaginário representações semânticas tecidas e desatadas pelo
corpo falante. É nesse sentido que sua debilidade destina o corpo
falante como tal ao delírio. Perguntamo-nos como alguém que foi
analisado poderia ainda se imaginar como sendo normal.
Na
economia do gozo, um significante mestre equivale a um outro. Da
debilidade ao delírio, a consequência é boa. A única via que se abre
mais além é, para o falasser, fazerse tolo [dupe] de um real, quer
dizer, montar um discurso no qual os semblantes obstringem um real, um
real no qual se crer sem a ele aderir, um real que não tem sentido,
indiferente ao sentido e que só pode ser aquilo que ele é. A debilidade
é, ao contrário, a tapeação [duperie] do possível. Ser tolo, tapeado por
um real – o que ostento – é a única lucidez aberta ao corpo falante
para se orientar. Debilidade – delírio – tapeação, esta é a trilogia de
ferro que repercute o nó do imaginário, do simbólico e do real.
Antigamente
falava-se das indicações de análise. Avaliava-se se tal estrutura se
prestava à análise e se indicava a recusa da análise para quem a
demandava por falta de indicações. Na época do falasser, digamos a
verdade, analisa-se qualquer um. Analisar o falasser demanda jogar uma
partida entre delírio, debilidade e tapeação. É dirigir um delírio de
maneira que sua debilidade ceda à tapeação do real. Freud tinha ainda de
se haver com o que ele chamava de recalque. E pudemos constatar, nos
relatos de passe, a que ponto essa categoria é, doravante, pouco
utilizada. Claro, há relembranças. Mas nada atesta a autenticidade de
alguma delas. Nenhuma é final. O chamado retorno do recalcado é sempre
arrastado no fluxo do falasser, no qual a verdade se revela
incessantemente mentirosa. No lugar do recalcado, a análise do falasser
instala a verdade mentirosa que decorre do que Freud reconheceu como o
recalque originário. Isso quer dizer que a verdade é intrinsicamente da
mesma essência que a mentira. O proton pseudos é também o falso último. O
gozo, ou os gozos do corpo falante, porém, é aquilo que não mente.
A
interpretação não é um fragmento de construção incidindo sobre um
elemento isolado do recalque, como o pensava Freud. Ela não é a
elucubração de um saber. Ela não é tampouco um efeito de verdade logo
absorvido pela sucessão das mentiras. A interpretação é um dizer que
visa ao corpo falante para produzir nele um acontecimento, para passar
para as tripas,dizia Lacan. Isso não se antecipa, mas se verifica a
posteriori, pois o efeito de gozo é incalculável. Tudo o que a análise
pode fazer é afinar-se com a pulsação do corpo falante para se insinuar
no sintoma. Quando se analisa o inconsciente, o sentido da interpretação
é a verdade. Quando se analisa o falasser, o corpo falante, o sentido
da interpretação é o gozo. Esse deslocamento da verdade ao gozo dá a
medida do que se torna a prática analítica na era do falasser.
Por
essa razão, proponho, para o próximo Congresso, nos reunirmos sob a
seguinte bandeira: «O inconsciente e o corpo falante». Isto é um
mistério, dizia Lacan. Tentaremos penetrar nele e esclarecê-lo. Para
tanto, que cidade nos seria mais propícia senão o Rio de Janeiro? Com o
nome Pão de Açúcar, ela tem como emblema o mais magnífico dos escabelos.
Obrigado.
[Versão estabelecida por Anne-Charlotte Gauthier, Ève Miller-Rose e Guy Briole. Texto oral, não revisto pelo autor].
Version du 30.09.2014
Tradução: Vera Avellar Ribeiro.
Revisão: Marcus André Viera.
Versão no idioma original: L'inconscient et le corps parlant (Francês)
N O T A S
1.
Conferência pronunciada por Jacques-Alain Miller por ocasião do
encerramento do IX Congresso da Associação Mundial de Psicanálise (AMP),
em 17 de abril de 2014, apresentando o tema de seu X Congresso.
2. Lacan J., O Seminário, livro 20: mais, ainda, Rio de Janeiro, JZE, 2008, p. 121.
3. Hegel G.W.F., Phénoménologie de l'esprit, trad. J. Hippolyte, t. 2, Paris, Aubier, 1941, p. 136.
4. Cf. Miller J.-A., « A orientação lacaniana. Um esforço de poesia », lição de 13 de novembro de 2002, inédito.
5. Cf. Lacan J., O Seminário, livro 20: mais, ainda, op. cit., p. 140.
6. Descartes R., « Méditation sixième », Méditations. Objections et réponses, Paris, Gallimard, 1953, p. 326.
7. Ibid., p. 330.
8. Husserl E., Méditations cartésiennes.
9. Merleau-Ponty M., « L'entrelacs – Le chiasme », Le Visible et l'invisible, Paris, Gallimard, 1964, p. 172-204.
10. Lacan J., O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Rio de Janeiro, JZE, 1985, p. 75.
11. Lacan J., « Televisão », Outros escritos, Rio de Janeiro, JZE, 2003, p. 510.
12.
Cf. Lacan J., « Joyce o Sintoma », Outros escritos, op. cit., p. 564.
Sobre esse ponto, reportar-se também ao : O Seminário, livro 23: o
sinthoma, Rio de Janeiro, JZE, 2007, p. 55 : « no sujeito que se
sustenta no falasser, que é o que designo como sendo o inconsciente ».
13. Lacan J., Je parle aux murs, Paris, Seuil, 2011, p. 103.
14. Cf. Lacan J., « Joyce o Sintoma », op. cit., p. 560-565.
15. Lacan J., O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise, Rio de Janeiro, JZE, 1988, p. 141.
16.
Cf. Masson D., « Impromptu. Les chemins du réel en musique »,
intervenção por ocasião do IX Congresso da AMP, Paris, 17 de abril de
2014, inédito – disponível à escuta na internet, no site
radiolacan.com.e em vídeo no site congresamp2014.
17. Cf. Lacan J., O Seminário, livro 23: o sinthoma, Rio de Janeiro, JZE, 2007, p. 150.
18. Cf. Lacan J., O Seminário, livro 20: mais, ainda, op. cit., p. 149.