Teremos
uma atividade com o maestro Gil Jardim no VII ENAPOL. Nosso colega Adriano
Aguiar, do Rio de Janeiro publicou há pouco tempo um artigo que contribui
bastante para a nossa discussão. Confiram!!!!
No
ano de 2009, no âmbito do seminário “A presença do Outro”, coordenado(1)
por Marcus André Vieira na EBP-Rio, ocorreu um debate sobre as relações entre a
música e o objeto a. Naquela ocasião, enderecei ao grupo que participava do
seminário um breve argumento, onde me apoiava na música de João Gilberto para
abordar essa relação. O texto abaixo, portanto, foi produzido no seio de uma
pesquisa em andamento e, ao publicá-lo nesse número de Latusa, optei por
preservar seu estilo pouco formal.
A
partir da hipótese levantada de que, na música, a melodia estaria no plano do
sentido e o ritmo traria a presença do Outro, eu argumentaria que isso talvez
seja verdadeiro no Rap, onde praticamente não existe um elemento
musical, que é o mais valorizado na Bossa Nova: a harmonia.
Acredito
que entender como a harmonia funciona nos ajudará a perceber que este é o
principal elemento que gera o efeito de “presença do Outro” na canção,
principalmente na Bossa Nova. Acho que é possível entender também porque João
Gilberto é tão genial. A tarefa parece ardilosa, mas creio ser possível
demonstrar.
Harmonia
e Angustia
Tomemos
a harmonia como a estrutura – no sentido lacaniano – da música. Costuma-se
dizer que existem sete notas musicais, não é isso? Errado, pois além destas notas,
existem também as notas “recalcadas” que estão entre cada duas das sete notas.
As ditas sete notas seriam: C (dó), D (ré), E (mi), F (fa), G (sol), A (la), B
(si). Acontece que do C para o D você tem um intervalo que corresponde a uma
nota, no caso o dó sustenido (C#). O mesmo acontece entre D e E, entre F e G, G
e A e entre A e B. Então na verdade o conjunto de todas as notas musicais,
digamos, o tesouro dos significantes musicais, seria: C, C#, D, D#, E, F, F#,
G, G#, A, A#, B. Temos então doze notas musicais ao todo. Aquelas mais
conhecidas são as sete notas que pertencem à Escala de Dó Maior. Uma escala é
um conjunto de notas que guarda um intervalo fixo entre elas, formando uma
estrutura. Se você mudar de tom, passando para a escala de ré, por exemplo, os
sete elementos (notas) que compõem a escala irão mudar, mas o intervalo entre
os elementos que compõem a escala permanece o mesmo. No caso da escala de ré as
notas seriam D, E, F#, G, A, B, C. Então, isso é o mais importante, para se ter
uma escala é preciso que algumas notas estejam necessariamente dentro e outras
estejam necessariamente fora, para formar uma estrutura com intervalos
determinados. Diríamos então que as notas que estão “dentro” compõem o Outro
que é a escala musical. Mas há também as notas que estão “fora do Outro”,
elas ex-sistem àquela escala. A coerência harmônica do Outro depende da
ex-sistência destas outras notas. Assim na melodia de qualquer música só podem
ser cantadas ou tocadas notas que pertencem à escala do tom daquela música. A
escala define todas as notas possíveis da melodia de um determinado tom
musical. As notas da escala são como os significantes que podem ser ditos em
uma língua dada. Se numa música cujo tom é ré, você tocar uma nota que esteja
fora da escala de ré, um G# por exemplo, aquilo soa estranhíssimo, causa uma
perturbação tão grande na estrutura, que qualquer pessoa percebe imediatamente.
É o que chamamos de “desafinado”. Esse efeito desafinado é a presença na
estrutura de um objeto (nota) que devia estar fora, para garantir a coerência
da estrutura. O desafinado então nada mais é do que angústia, aparição do
objeto na cena.
Porque
João Gilberto é tão genial
A
genialidade de João Gilberto se dá em vários planos. Primeiro ele canta com
aquela voz minimalista para tirar todo o efeito imaginário que era dado pelo
vozeirão dos grandes cantores da época anterior à dele (pense no vozeirão de
Nelson Gonçalves em “boemia, aqui me tens de regresso…”). A voz minimalista de
João Gilberto é só um artifício técnico pra fazer aparecer todas as
transformações radicais que ele faz na estrutura musical das canções. Ele
introduz estas notas que eu chamei de “ex-sistentes”, nos acordes que utiliza
ao tocar o violão, produzindo os chamados “acordes dissonantes” – que são como
neologismos musicais – produzindo uma tensão entre a melodia e acorde
subjacente, e gerando o efeito perturbador e angustiante que descrevi acima. Só
que ele consegue fazer uma composição destas notas ex-sistentes entre si na
estrutura, como que ligando as peças soltas de um acorde nas notas “corretas”
de outro ou fazendo ressoar as peças soltas entre si, de tal maneira que aquilo
soa belíssimo, mas ao mesmo tempo preservando o efeito desafinado. Doravante
não dá mais pra decidir se é desafinado ou se é “afinadíssimo”.
Assim,
João Gilberto inventou uma nova estética musical. Praticamente ele inventou uma
nova língua musical dentro da língua materna. É como diz Caetano Veloso ao se
referir à invenção de João Gilberto na música “Saudosismo”: “… as notas
dissonantes se integraram ao som dos imbecis”. Hoje, fica mais difícil perceber
a radicalidade do que foi esta invenção, pois já estamos totalmente banhados
pelo Outro sonoro que João Gilberto inventou. Para ter uma noção do que foi
esta experiência sugiro ouvir a interpretação que ele faz da música Sampa, pois
estamos muito habituados a ouvir esta canção na versão do Caetano e talvez por
isso dê para perceber um pouco a transformação que João Gilberto faz. No
entanto, Sampa é uma música já dissonante, uma música que mesmo no original já
fala na língua de João Gilberto. Hoje os neologismos musicais que ele criou não
causam mais a mesma estranheza, porque já estão incorporados na cultura.
Poderíamos dizer que os neologismos de João Gilberto constituíram na MPB uma outra
língua materna musical: “… a realidade é que aprendemos com João pra sempre a
ser desafinados” – canta Caetano ainda em “Saudosismo”.
Talvez
o depoimento abaixo, dado por Chico Buarque, ajude a vislumbrar o que foi ouvir
João Gilberto pela primeira vez: “João Gilberto detonou tudo! Eu e um amigo
ficávamos ali com o violão tentando decifrar a batida e as harmonias do João.
Quando saiu o primeiro disco dele a gente ficava repetindo não sei quantas
vezes a introdução de “Aos Pés da Cruz”, com aquele acorde parado. (…) De vez
em quando chegava alguém dizendo: “vi aquele cara esquisito que você gosta na
televisão” outro falava: “acho que ele é bicha!” Pois bem o João pra mim ficou
sendo bicha durante um bom tempo. E assim mesmo, eu queria cantar e tocar violão
daquele jeito. Eu tinha quatorze anos de idade, era aquela idade em que os
garotos começavam a procurar mulher e a se preocupar com sexo. Eu também. Mas a
vontade de imitar João Gilberto, para mim, era maior do que o pavor de passar
por bicha. Já vi o Caetano, o Gil, o Edu Lobo, todo mundo se lembra de onde
estava quando ouviu “Chega de Saudade” pela primeira vez. Acho que a minha
geração entendeu o João melhor do que a geração dele próprio”.(2)
Forte
não? Desfaz imediatamente a idéia que se poderia ter de João Gilberto como um
cantor chato, intelectual, de voz baixa. Isto seria o mesmo que dizer de Freud,
que ele seria apenas o burguês bem situado de Viena, segundo André Breton, sem
conseguir reconhecer em sua obra o “rio de fogo que nada deve ao riacho artificial
de François Mauriac” (Lacan). Havia algo tão radical na obra de João Gilberto,
a ponto de tocar profundamente o gozo de um menino de 14 anos, como Chico
Buarque testemunha. O som de João está mais para os ruídos que Jimi Hendrix
extraiu da sua guitarra, levando ao delírio a geração seguinte. Embora Jimi
Hendrix ainda apele muito para o imaginário (queima de guitarras, tocar com a
língua, etc), João reduz o imaginário ao mínimo, para trabalhar na relação do
Simbólico com o Real.
No
final do depoimento do Chico Buarque penso que o que ele está dizendo é: “foi
um acontecimento tão marcante, tão radical, que todo mundo se lembra de onde
estava no dia em que tudo mudou”. Este relato me fez lembrar dos atentados de
11 de setembro de 2001. Todo mundo lembra onde estava naquele momento. No mundo
da MPB também tudo mudou depois de João Gilberto. João fundou outra geração na
música popular brasileira, talvez a melhor que já tenha existido!
Faltou
falar do que João Gilberto faz com o tempo musical ao cantar, pois ele quebra a
cadência musical para fazer aparecer outros efeitos estranhos. Mas aí fica pra
outra… É isso aí. João é nosso Joyce!
Notas:
1-. “A presença do Outro” – Curso Livre do ICP-RJ realizado no primeiro semestre de
2009 na Seção-Rio da Escola Brasileira de Psicanálise, ministrado
por Marcus André Viera.
2-. Entrevista concedida por Chico Buarque a Almir Chediak em “Songbook
Chico Buarque, volume 4″. 2 Rio de Janeiro, Lumiar Editora, 1999.
Nenhum comentário:
Postar um comentário